Elisa Alvarenga (AME da EBP/AMP) A “Nota sobre o pai”[1] de Jacques Lacan foi um…
Ressonâncias da intradução lacaniana
Marcus André Vieira (AME da EBP/AMP)
Seguem algumas reflexões sobre o tema da tradução[1]. Parto de uma questão específica, mas proponho uma discussão mais ampla. Creio que uma aproximação entre tradução e interpretação pode nos ajudar quando lançamos uma discussão sobre a relação entre os corpos e os discursos, tal como propõem tanto Lacan em seu Seminário 19 quanto o título de nosso próximo Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: “Os corpos aprisionados pelo discurso …e seus restos”.
Em uma das passagens desse seminário, Lacan, para designar essa relação, se serve do verbo attraper, traduzido como aprisionar na versão brasileira. Quando ouvi o título do Encontro pela primeira vez, lembro de dizer “essa tradução está estranha”, pois me parecia que dificilmente Lacan usaria um verbo tão dramático quanto esse. A surpresa maior foi descobrir que a frase que eu estranhava vinha de um seminário cuja versão brasileira tinha sido definida sob minha responsabilidade.
Por que estranha? Se assumimos que traduzir é emparelhar dois campos semânticos, o do termo na língua de partida com o da língua de chegada, diremos que nesse caso eles pareciam se distanciar demais. Afinal, a rede de significados de attraper se sustenta bem mais em termos como “agarrar”, “tomar”, “fisgar”.
Podemos também assumir que traduzir é igualmente interpretar, movimentar a língua de chegada, forçá-la um pouco para produzir um efeito semelhante ao termo original, tomando alguma liberdade com o código. Neste caso, a tradução estaria adequada, pois podemos fazer entrar em cena a etimologia e veremos que attraper vem de trappe, trampa em espanhol, armadilha, alçapão.
Apesar disso, segui me interrogando se teria havido alguma coisa a mais que justificasse essa tradução. A ideia de aprisionamento apela ao imaginário, tem valor épico e provavelmente por isso tende a se tornar protagonista. Não à toa se tornou título. Mas, se nos concentramos nesse aspecto, a tradução parece novamente inadequada, quando sabemos como os corpos são constituídos pelo discurso mais que aprisionados por ele. Alguma coisa imprecisa pode ser agarrada pelo discurso, mas só algo já constituído e com forma estável pode ser aprisionado por ele.
A chave, creio, é o que se entende por corpo. Lacan, nesse momento de seu ensino, está lidando com o corpo a partir de novas noções, dentre as quais, brilha o termo neológico parlêtre, traduzido como falasser. Os neologismos e invenções linguageiras, inúmeros no ensino de Lacan, ganham protagonismo todo especial em seu último ensino, levando à loucura os tradutores.
Proponho, então, um pequeno desvio sobre alguns aspectos da tradução para podermos abordar dois termos, falasser e lalíngua, do ponto de vista de que eles concentram toda uma reinterpretação do próprio ensino de Lacan. São verdadeiras interpretações que, a meu ver, localizam de maneira precisa uma relação entre corpo e discurso até então pouco explorada.
Interpretação e tradução
Parto da seguinte analogia feita por Jacques Lacan entre tradução e interpretação: A interpretação deve introduzir no texto algo que subitamente torne possível a tradução[2].
Numa análise, tenta-se dizer uma singularidade real que não cabe nas palavras. Como traduzi-la, então, no sentido de lhe dar um lugar no universal, de fornecer a ela um mínimo de legibilidade que permita ao analisante sustentá-la em sua vida?
Há de haver algo de possível nessa tradução, pois, senão, faríamos análise apenas para nos darmos conta de que o intraduzível não se traduz. Neste sentido, a única saída seria calar, como o místico que se cala sobre Deus porque Ele não pode ser dito. Ora, o inconsciente nunca é divino. Nem mesmo quando o dizemos real, absolutamente fora do sentido, em oposição ao inconsciente transferencial. Por isso, podemos sustentar que há algo de tradução no ato analítico.
Essas questões estão no centro da cena nos debates sobre a tradução. Todos sabem que a tradução é impossível, mas, ao mesmo tempo, todo tradutor assume que algo é possível, senão, para quê tentar? A tradução é impossível, mas é possível traduzir. É o paradoxo da tradução em geral. O tradutor faz sua aposta no traduzível, contando com as notas de pé de página, por exemplo, para o intraduzível. Já na análise tudo é feito para que sejamos levados a buscar o tempo todo a tradução do intraduzível.
Proponho desdobrar a tradução, então, em três aspectos para abordar o modo como a tradução lacaniana lida com o real. A tradução possível, a transcriação e a intradução.
A tradução do possível
O primeiro aspecto é o da tradução pelo sentido, mais ou menos o que o senso comum considera uma tradução. Um conteúdo determinado, exportado para outra língua, deve ser representado por um conteúdo de significação equivalente. Funciona bem quando os conteúdos em questão são bem-comportados, têm limites precisos, como aqueles, por exemplo, que mobilizamos no manual de instruções de uma geladeira.
Essa tradução é sempre desinteressante, o que faz com que na prática, os manuais nunca sejam lidos. A razão, já sabemos, é que a vida mora no inconsistente, no imprevisível, no intraduzível. Boa parte das coisas da vida, ou do gozo, como dizemos, não encontra tradução. Exatamente por isso, Lacan cria seus neologismos. Em certo sentido, todo seu estilo diz respeito a trazer à cena a vida exatamente no que ela não cabe em um manual.
Na análise, sentimos que nada vai dizer melhor o mistério do que somos ou do que foi para nós aquele dia, aquele gesto, do que esses elementos intraduzíveis. Esse tipo de material da análise sustenta o real do gozo como nenhum outro, são objetos a, encarnados por Lacan pelo termo resto. O que sustenta o impossível da tradução, o mais singular de mim, encontra-se na análise como resto, lixo subjetivo, coisas que não se encaixam, pedaços de sentimento sem dono ou de cores e cheiros sem morada. Podem ser igualmente palavrões, obscenidades e expressões bizarras, sonhos, risos, atos falhos, tantas figuras do que numa vida, mas também numa língua e cultura, é excrescência e, por isso, resto[3].
A transcriação do impossível
Aqui reside um segundo aspecto da tradução. Ele não supõe apenas que se escolham os conteúdos corretos para traduzir um termo, mas também que se trabalhe com o contexto em que esses termos se instalarão na língua de chegada. É preciso remanejar conteúdos, mudar o encadeamento, a sintaxe, mexer no ritmo. É aquilo que, em análise, ocorre com o campo do eu para acomodar os objetos a. Por isso, Lacan dirá que há algo que “subitamente” torna a tradução possível. A partir daí, os restos, mesmo não exatamente incluídos, se dizem, sem serem, no entanto, remetidos a alguma explicação, apenas por se manterem como tal. Apenas restam, como o cheiro azul de uma tarde única ou o som de quando, certo dia, passamos a manteiga no pão.
Nada impede que, nesse forçamento, seja preciso criar termos que sustentem o valor quase neológico dos restos. Destaquei esse aspecto em outra ocasião com o termo transcriação, que é a “tradução”, por Augusto de Campos, do Make it new! de Ezra Pound[4]. Transcriar indica que para transportar um tanto desse impossível para outra língua será preciso inventar uma entidade nova. Para que isso aconteça, porém, é preciso forçar a língua de chegada de maneira parecida com o que realiza o termo original na língua de partida.
Às vezes, o intraduzível precisa, para ser traduzido, que se dobre a língua. Desta cepa nascem um sem-número de neologismos de Lacan, dos quais lalíngua e falasser.
A intradução e os intradusseres
Falasser é a transcriação do parlêtre de Lacan. O termo diz não apenas que só há ser para aqueles que falam, mas que só há ser enquanto for falado, enquanto houver corpos falando.
Vale a analogia com o ser do amor na experiência amorosa. O amor só tem essência enquanto há gestos de amor, cartas, mensagens, enfim, palavras de amor. Por isso, como canta Cazuza, tantas vezes temos o sentimento, a triste vertigem de que, uma vez terminada a relação, encerrada a conversa, o amor nunca existiu[5].
No sentido que o termo falasser condensa, a fala secreta o corpo. O corpo como ser, consistência, unidade, só é corpo se sustentado por ela. O corpo é concebido, então, de modo bem distante do “Estádio do espelho”, nem tanto como forma estável, mas como forma que se desfaz, “sai fora a todo instante”[6]. É muito menos uma entidade prévia, mas fato de discurso, de essência quase que performática. Meu corpo é meu enquanto o uso, enquanto estou no encontro com outros corpos.
Outro exemplo dado por Lacan nesse sentido é o da dança: o corpo existe ou deixa de existir enquanto se dança? Na dança, ele tem o ser do falasser. O corpo parece existir como em nenhum outro momento, mas ao mesmo tempo sem um ser prévio. Perdemos nosso corpo na dança e ganhamos o corpo da dança, o que Lacan assinala como condançação[7].
Quando, portanto, na lição do Seminário 19 que estamos examinando, surge o verbo attraper para assinalar a relação entre corpo e discurso, é preciso tomar essa relação a partir de tudo o que o termo falasser introduz como interpretação e deslocamento de conceitos anteriores, como, por exemplo, sujeito e corpo.
Lacan, nessa lição, define a sessão analítica como espaço em que, antes de mais nada, há uma “confrontação de corpos”. Ele está destacando, porém, não o encontro de dois seres, analisante e analista, mas o atravessamento de duas falas, de dois discursos, o analítico e o do mestre. Ao mesmo tempo, destaca o quanto esses discursos são tudo menos desencarnados, pois mobilizam a substância corporal gozante. É isso que fará diferença em uma análise: o gozo do corpo falante e não do corpo das relações sociais, o corpo do espelho.
Creio que essa nova relação entre o discurso e o corpo pode ficar mais clara se pedimos ajuda a um terceiro aspecto da tradução, uma vez que é a capacidade de intradução o que mais interessará a Lacan e à prática analítica em seus últimos seminários. É o mais difícil dos três e pode ser abordado a partir de um termo caro a Lacan, ao qual Miller deu um destino clínico: ressonância[8].
Se a interpretação é tradução, a ressonância praticamente não é interpretação ou, então, forçando um pouco, talvez possamos dizer que sua tradução é apenas sua ressonância.
Alíngua e Lalíngua
Nada melhor para demonstrá-lo que o termo Lalangue. Ele é intraduzível, não exatamente por não encontrar equivalente, mas porque não há como dar a ele apenas um termo, já que não se distingue em termos sonoros de a língua. Caso seja ouvido como a língua, dirá de um objeto mais ou menos estável, que pode ser estudado: “A” língua. Caso seja ouvido como alíngua, será um bizarro ser que não pode ser objetivado, um ser de gozo, pois só existe no modo como é dito, já que soa de modo idêntico à a língua.
Esse “modo de dizer”, que encerra um gozo a mais, é inapreensível. Não há entonação ou outra coisa que se possa agarrar para fixar esse gozo específico do falante quando diz alíngua em vez de a língua. Há, porém, um gozo a mais que ressoa e que não se nota a não ser quando anotado, grafado.
É o que Lacan caracteriza como “lalação”, afirmando que escolheu o termo para que pudesse se aproximar desse balbucio inaugural, para que pudesse apreender a língua sem seus cortes, mais em sua dança lúdica de fonemas.
Alíngua ressoa a experiência da língua, do gozo de falar. Ao escrever o artigo e o termo juntos, em sua língua materna, Lacan traz à cena o prazer de balbuciar, lalar, que só se consegue resgatar em português com o termo lalíngua. Por isso, em português, traduzimos o termo igualmente com o neologismo, para dar mais ênfase à lalação. É o gozo de ser tomado por lalíngua. É o gozo da ressonância[9].
O gozo que esse neologismo lacaniano carrega se comporta como o elétron na física quântica. Caso o modelo experimental construído para observá-lo parta do pressuposto de que ele é energia, o elétron se comportará como se fosse apenas luz; caso seja tomado como partícula, será matéria. Sua natureza é ocasional, depende de como é construído o modelo experimental em questão.
Nessa analogia, o modelo é o discurso que, ao agarrar (attraper) o elétron, o aprisiona (attrape). Tudo ao mesmo tempo agora.
Toda ideia de Lacan é que o termo soe exatamente como o original para percebermos que somente a escrita pode registrar o gozo do falante. A escrita, no sentido comum, do que se escreve em um papel, é um modo da linguagem diferente da fala, que acolhe o gozo do falar de outra forma. O traço porta um gozo que nem sempre aparece na fala, escondido “por trás do que se ouve no que se diz”, segundo a fórmula célebre de Lacan em “O Aturdito”. Por isso, com base na escrita, Lacan pode, neste neologismo, trazer o gozo da lalação na própria palavra que usamos normalmente para dizer de sua perda – Alíngua em vez de A língua.
Desta forma, o gozo deixa de ser um objeto e pode se apresentar como presença, pressentida no próprio discurso que o aprisionava. O que ganhamos com isso? A possibilidade de “fazer com”, de lidar, de dar lugar ao gozo indefinido desse elétron, que tanto pode ser uma coisa quanto outra, sem que se sonhe com um acesso direto a ele, um real em si que só existiria como Deus.
Só há corpo falante enquanto ele é atravessado por esse gozo, anterior ao corte, ao vazio entre as palavras. Anterior, logicamente, ao sujeito do desejo e do significante. Esse gozo é o que seria o gozo antes que a negatividade, a perda constitutiva da entrada na linguagem, tivesse se instalado em nossa existência. Só podemos pressenti-lo em algumas situações pontuais. Como quando o badalo da escrita o faz vibrar como um sino, ressoar – na metáfora célebre de Jacques-Alain Miller[10] para a interpretação.
Nesses intradusseres criados por Lacan, como é o caso de lalíngua, não será como na transcriação, a surpresa de uma nova maneira de dizer o indizível, mas muito mais a experiência do gozo que nele se ouve sem que seja dito. Só que, mesmo assim, mesmo prosseguindo sem ser dito, o gozo de lalíngua passa a estar ali de outro modo.
É como se alguma coisa encontrada na análise não engendrasse emparelhamento de conteúdos, nem a surpresa de um novo conteúdo, mas a certeza de uma presença. Nessa presença, apenas sou, sem quê nem por quê. É experiência que transforma e muda o valor da presença do Outro em mim, de estranho a companheiro contingente[11].