skip to Main Content

Arte e Cultura

Arthur Bispo do Rosário
Título atribuído: “Manto da apresentação – Verso”
Coleção Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

A Comissão de Arte e Cultura conta, para este número do boletim, com a luxuosa participação de Guilherme Gontijo Flores para uma interlocução entre campos. Poeta, tradutor e professor da UFPR, nosso convidado tem um percurso intenso com os usos da língua, seja pela via autoral, seja pela via da tradução. Talvez possamos, inclusive, dizer que essas duas vias, autor-tradutor possuem uma torção topológica, onde uma não se dá sem a outra.

Para animar a conversa, endereçamos a ele alguns pontos ao redor do tema do Encontro Brasileiro deste ano: corpos, discursos e restos, tomados nessa tensão onde algo se decanta. Um corpo se faz pelo discurso, entretanto, algo nessa conjunção fica disjunto, justamente por não se encaixar no todo da narrativa. “Restos” circunscreve um conceito importante para a psicanálise de orientação lacaniana. Podemos dizer que um sujeito se constitui em sua singularidade justamente pelos restos daquilo que recebe em seu encontro com o Outro – restos da língua que lhe é apresentada, do caldo cultural ao qual chega, da ambivalência inevitável de suas experiências afetivas. Tais restos se decantam e escapam à norma da linguagem que aprisiona os corpos. Isso pode ser pensado de forma individual, social, cultural e política.

Em seu vasto percurso também pela mitologia, destacamos o recente texto no encarte da peça teatral “Fantasmagorias IV- agora tudo era tão velho”. Ali, Guilherme fala do vivo do mito, em um belo texto que destaca a potência da língua nesses contos que sempre acrescentam um ponto. O vivo da língua mantém o vivo do mito, sempre renovado, em uma relação infinita entre passado e presente. Também o tema de nosso Encontro pode ser pensado nessa mesma toada: o termo attrapés, inicialmente traduzido como “aprisionados”, pode ser traduzido como enlaçados, fisgados, tomados, capturados. Lacan cria um neologismo, o verbo unier, uniar, que associa unir e negar, e diz que “no que tange à função representada na análise pelo mito do Pai, ele unia[1].

Na sequência, trazemos o que instigou Guilherme, a partir dessa proposta de interlocução.


Restos de poética. Poéticas, de resto.

Guilherme Gontijo Flores

(…) je ne suis pas un poète, mais un poème. Et qui s’écrit, malgré qu’il ait l’air d’être un sujet
(Jacques Lacan)

Poetas, como a maioria das pessoas, nascem pensando que precisam, antes de tudo, ter uma voz. Mais ingenuamente, supomos, poetas que somos, que devemos, pra isso, criar uma voz. Moldá-la, guardá-la, expô-la. Formá-la minuciosamente pra que seja reconhecida acima de tudo, além de todos; pra que seja a mostra in-questionável, -dubitável, -transferível de uma singularidade.

Ah, a voz!

Miragem da construção de si.

Fizéssemos, por outro lado, um pequeno exercício mental, e quem sabe outras vozes nos apareçam. Façamos logo dois. Em primeiro lugar, pegue por aí um texto escrito por um afeto (ou um profundo desafeto). Leia lentamente as palavras ali escritas e perceba que você, por mais silêncio que faça na leitura, escuta a garganta desse mesmo (des)afeto. As gargantas dos outros nos invadem o tempo todo, como fantasmagoria. Por vezes, parecem mesmo vozes, sempre passíveis de presença.

Agora pare um instante, também em silêncio, e se concentre. O segundo exercício é talvez mais simples à primeira vista: imite vozes que você reconhece por aí; podem ser as mais banais e repetidas, como um Silvio Santos, ou um Lula; ecos antigos e batidos como um Chacrinha, uma Dercy Gonçalves, ou novamente um desafeto-afeto, a que você quiser. Escutou sua própria garganta sendo a outra voz? Perfeito. E não importa se a imitação foi imperfeita. Isso era o aquecimento. Agora vem o que importa: imite apenas sua própria voz.

Tentou? Notou que é impossível?

Carregamos uma só garganta, e muitas vozes. Desconfio. Menos a própria voz, que é a que mais assola.

Como escritor, tentei, nos meus primeiros quatro livros, me livrar desse anseio repetido de ter uma voz poética pra chamar de minha. Fiz uma tetralogia, intitulada Todos os nomes que talvez tivéssemos, organizada a partir dos poemas de brasa enganosa (2013), Tróiades – remix para o próximo milênio (2014/2015), l’azur Blasé, ou ensaio de fracasso sobre o humor (2016) e Naharia (2017); e nela busquei fazer coro as vozes outras que carrego comigo: as da infância, as da cólera belicosa, as da piada fraca e melancólica, as das minhas avós. Busquei em cada livro mudar radicalmente todo o jogo, apagar-me, diluir-me: troquei as formas, os temas, os modos, os tiques, as obsessões, o gênero literário, as influências, as pretensões. Fiz uma tetralogia pelo avesso: descontinuidade em quatro tempos.

O resultado, como era de esperar.

Uma só voz.

Assim me disseram alguns leitores atentos e amigos, os que me conhecem de carne e de papel, os que convivem por tempo suficiente pra extrair também os silêncios, hesitações, gagueiras, tiques e manias que constituem um sujeito em fala ou texto.

A que eu nunca escuto. Voz. O rastro, ou o resto quase insignificante, de tudo que se fala numa garganta. Talvez aquilo que o outro tenta imitar em mim, e que em mim é: tudo o que se veta de imitar.

Miragem da construção de si. Ah, a voz.

Nesse fato curioso, de que um poeta não detém sua própria voz, mas apenas a reconhece quando ecoa no outro, quando retorna assinada pelo reconhecimento alheio; nesse gesto de assombro porque existo no outro que em mim existe, percebo que a psicanálise continua sendo umas das forças de ação e pensamento mais fortes pra cogitar o que seria essa coisa que é a instituição literária, e o que seria essa bizarríssima instituição ocidental chamada poeta.

Eu é que não saberia responder, claro. Por isso, faço.

Poemas. No plural.

E aguardo que venha alguma voz.

Mas percebo que o poema, como ato de linguagem, tem sua força precisamente na contradição constitutiva. Vem de um corpo, de uma garganta; parece tantas vezes ter uma voz inequívoca. No entanto, se move. Isto é. Permite que outra garganta ali se aninhe. Que outro sujeito ali entre e diga: Esta é a minha carne.

E nesse gesto não imite voz alguma.

Talvez o poema seja mesmo lugar onde um resto toma forma pública. Ato feito, enquanto alguém o diga, o poema não se encerra. Coletiva. A voz que o fez, se resta, pode ser a fresta de outras vozes.

A garganta, se existe, serve mesmo é pra ficar rouca.


[1] Lacan, J. (1971-72). O seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 205.
Back To Top