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Tecidos e palavras

Aléssia Fontenelle (EBP/AMP)

Como fazer suportável o corpo próprio?[1] Os analisantes falam com o corpo que habitam e que engendra ações e paixões. De que corpo falamos? Do corpo que se é ou do corpo que se tem e seus restos? No limite imposto por isso que escapa e que não cessa de se escrever, como vestir o gozo para habitar o corpo que o aloja?

O Outro – do qual recebemos as palavras que entranham, que nos representam e nos desnaturalizam – introduz a problemática do corpo e as distintas modalidades de gozo da civilização onde transitamos. O “efeito da linguagem se padece”, nos dirá Lacan[2]. Já não estamos nos tempos em que o real era abordado pelos mitos e pelas crenças compartilhadas. Agora, com o arrefecimento das práticas discursivas e o esvaziamento das ideologias, o discurso preconiza o mais-de-gozar e, com a hipertrofia do uso dos objetos, cada um está autorizado a viver seu próprio modo de gozo[3], cada um isolado em seu mundo de gozo, ainda que “essencialmente embaraçado por histórias”[4].

Assim, sem passar pelos semblantes universais que organizam a existência, a paixão pelo corpo é o traço próprio da vida cotidiana do século XXI que, segundo J.-A. Miller[5], tem como modelo a adicção. Nessas coordenadas, o que prevalece não é o sujeito do significante, nem o sujeito da identificação, mas o falasser. Isso significa que o Outro está destituído e, em seu lugar, está o corpo. Há, assim, um deslocamento do campo da identificação para o acontecimento de corpo que demarca uma anterioridade lógica à mordedura do significante. Destituído de toda representação, esse encontro afeta o corpo e imprime uma marca que se encarna (corporifica) para além da identificação[6]. A imagem encarnada é o corpo que o falasser tem, sem sê-lo.

Na lógica contemporânea do real desprovido de sentido, evidencia-se uma dificuldade, cada vez maior, em armar o imaginário corporal. Como produzir a articulação entre o gozo que insiste sem limite e o gozo no qual podemos nos localizar? A construção da imagem pela via do semblante possibilitaria um tratamento à falha estrutural do falasser, permitindo ter um corpo?

Para a psicanálise, “a linguagem é a condição do inconsciente”[7] e, tal como os vestidos que as mulheres não cessam de não tecer em torno de um corpo impossível, é efeito de um recorte significante. Aliás, Freud se interessa pelo motivo inconsciente que teria levado as mulheres, que pouco contribuíram com a civilização, a legarem a técnica de “trançar e tecer”[8]. E supõe que o entrelaçamento das fibras, que se assemelha aos pelos enraizados na pele, permite às mulheres bordar e vestir com um véu a imagem do sexo desnudo.

Clérambault identifica uma peculiar relação entre as mulheres e os tecidos. Esse objeto não só exercia uma atração sobre algumas mulheres como também detinha a particularidade de ser algo furtado do outro. Além disso, tinham sensações sexuais intensas com o roçar de uma seda, embora se considerassem frígidas. Há, portanto, uma paixão erótica pela seda que, tomada como um substituto do corpo masculino, caracterizaria uma perversão especial “bastante adaptada ao temperamento feminino”[9]. Assim, o objeto-tecido se torna um objeto de gozo que, sem a mediação da fantasia, se apresenta como um gozo non-sens.

Contudo, o fato de o sujeito feminino ser constituído por um não-ser já lhe confere uma aproximação com os semblantes “que têm função de velar o nada”[10]. Nesse sentido, vale trazer à tona Frida Kahlo e o seu incansável fazer tela com o traje tehuana.

Como fazer suportável o corpo próprio afetado pelo gozo perturbador ali alojado? Lacan se refere ao vestuário como o objeto em torno do qual se tece um véu: “sobre o véu pinta-se a ausência”[11]. A indumentária, mais do que um invólucro, opera como índice do que se inscreve no corpo como modo de gozo. Em seu diário, Frida revela: “Minhas saias de babados rendados e a velha blusa que eu sempre vestia (…) compõem o retrato ausente de uma só pessoa[12].

Ao longo dos anos, pelo viés singular de sua arte, Frida Kahlo foi construindo sua solução/amarração ao real do corpo, algo que não foi possível encontrar no discurso da tecnologia médica com suas cirurgias, medicações e próteses. Logo, a imagem do traje tehuana se faz vestimenta para o corpo mordido pelo gozo, construindo um novo laço com o gozo foracluído do sentido.


[1] O presente texto articula alguns pontos desenvolvidos na tese de doutorado, “A arte de Frida Kahlo: o savoir-y-faire com as peças soltas”, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[2] Lacan, J. “Le Séminaire de Jacques Lacan, “RSI”, 21 Janvier 1975”. In: Ornicar? Bulletin periódique du Champs freudien. n. 3, p.106, Paris, mai 1975.
[3] Velásquez, J. Psicosis ordinárias – una mirada desde la clínica borromea. Nueva Escuela Lacaniana – Santiago, 2018, p.40.
[4] Miller, J.-A. (1986). “A palavra que fere”. In: Opção Lacaniana: Revista Internacional de Psicanálise, n. 56/57, 2010, p. 70.
[5] Miller, J.-A. “Las profecías de Lacan. Entrevista a Jacques-Alain Miller”. In: Le Point, 18 ago. 2011. Disponível em: https://zadigespana.com/2019/05/13/las-profecias-de-lacan-entrevista-a-jacques-alain-miller/. Acesso em: 12 maio 2024.
[6] Lacan, J. (1975-76). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
[7] Lacan, J. “Radiofonia”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 404.
[8] Freud, S. “Conferência XXXIII – A feminilidade”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – v. XXII: Novas Conferências Introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos (1932-1936). 2a. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p. 162.
[9] Clérambault, G. G. DE. “Paixão erótica dos tecidos na mulher” [1008]. In: Tadeu, T. (org.). O grito da seda: entre drapeados e costureirinhas: a história de um alienista muito louco. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012, p. 62.
[10] Miller, J.-A. “Mulheres e semblantes II”. In: Opção Lacaniana online, v. 1, n. 1, pp. 1-25, março 2010, p. 2. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/Mulheres_e_semblantes_II.pdf
[11] Lacan, J. (1956-57). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 157.
[12] Kahlo, F. (1910-54). O diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995, p. 143.
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