Os corpos aprisionados pelo discurso …e seus restos
- Do título:
O título desse XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano foi extraído do último capítulo do Seminário, livro 19[1], em que Lacan, depois de uma extensa exploração acerca do “Há um”, desenvolve de maneira bastante condensada a afecção dos corpos pelo discurso. O título do capítulo – no original francês, “Les corps attrapés par le discours” – já nos coloca, de saída, a questão de como entendê-lo a partir da tradução do verbo attraper. Segundo a observação de Marcus A. Vieira, responsável pela versão final da tradução brasileira, “attrapés” foi traduzido como “aprisionados”, podendo dar a ideia de que o discurso é exterior aos corpos e que seriam por ele capturados. Nosso Encontro será também uma oportunidade para precisar, a partir da experiência analítica, o que Lacan estaria indicando na relação entre os discursos e os corpos, ao convocar o verbo “attraper”. Em outras palavras, o que dos corpos é apanhado, pego, fisgado pelos discursos e o que aí se apresenta como fora de alcance? Contudo, deixemos claro: para a psicanálise, não se trata de uma liberação dos corpos, mas de demonstrar, no caso a caso, o que nos corpos não é tomado pelo discurso, pois é a partir daí que o discurso da psicanálise pode operar.
Lacan retoma o tema da sobredeterminação, em Freud, dizendo textualmente que: “(…) em suma, o que ele [Freud] trouxe de essencial? Trouxe a dimensão da sobredeterminação. É disso que dou a imagem, com meu modo de formalizar da maneira mais radical a essência do discurso, na medida em que ele ocupa uma posição giratória em relação ao que acabo de chamar de suporte”[2]. Por isso, como consequência lógica, acrescentamos ao título desse capítulo “…e seus restos”, justamente para colocar em questão essa operação de separação efetuada entre os corpos e os discursos. Essa operação produz um resto inassimilável, tornando-se, ele mesmo, a visada final de uma análise. Esse acréscimo vem responder à dimensão clínica que implica a parceria analítica.
Na “Alocução sobre as psicoses da criança”, Lacan lançou um desafio aos psicanalistas: “como responderemos, nós, os psicanalistas: a segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes?”[3] Por isso, sem cair em uma redução sociológica, a tônica de nosso Encontro será apostar na singularidade da clínica psicanalítica para a interpretação dos sintomas contemporâneos. À medida que o tempo dos mercados comuns não cessa de oferecer semblantes “prêt à porter”, gerando novos processos de segregação, a psicanálise pode dar lugar à invenção de modos singulares para lidar com os encontros com o real produzidos pela civilização.
- O discurso:
Mas, qual discurso alcança os corpos hoje? Sobretudo o Discurso do Mestre (DM). Citamos Lacan: “Mas persiste o fato de que, no nível em que funciona o discurso que não é o discurso analítico, coloca-se a questão de como esse discurso conseguiu aprisionar corpos. No nível do discurso do mestre, isso fica evidente. No discurso do mestre, vocês, como corpos, estão petrificados”[4].
A incidência do DM na civilização não é disjunta da sobredeterminação subjetiva, tampouco do gozo que afeta os corpos, na medida em que o dizer equivale ao discurso, para além dos ditos.
Cabe a nós, portanto, delinear a estrutura do discurso do mestre contemporâneo e, a partir desse ponto, investigar de que modo tais corpos são aprisionados, ou seja, como eles são constituídos e responsivos aos significantes mestres da época. Com isso, entramos no campo do sintoma.
Seguindo, agora, pela referência de Jacques-Alain Miller[5], no caminho de elaborar a estrutura do discurso de dominação contemporâneo, percebemos que os efeitos conjugados das luzes e do capitalismo avançam silenciosamente “nas profundezas do gosto”[6], contribuindo para evaporar o pai. Das técnicas fertilizadoras que reduzem o pai ao espermatozoide às guerras e catástrofes climáticas, tudo nos leva à desvalorização do patriarcado ou, como afirma Miller, ao “rebaixamento à biologia da função paterna”[7].
Assim, podemos interpretar o mal-estar contemporâneo a partir da aliança entre o discurso capitalista e o discurso da ciência, ambos ocupando o vazio deixado pela vacância do pai.
- Os corpos:
A pluralidade dos corpos à qual Lacan se refere não nos é indiferente, pois, no que diz respeito ao gozo (só o corpo vivo goza), é o corpo a corpo que está em jogo. Citamos Lacan: “Não é por isso que o gozo é sexual, pois acabo de lhes explicar, este ano, que o mínimo que se pode dizer é que ele não é indireto, esse gozo. É o gozo corpo a corpo. (…) É isso que faz com que possa haver nessa história vários corpos aprisionados, e até série de corpos”[8].
A pluralidade dos corpos, que implica essencialmente o gozo, seria a tradução da incidência do DM sobre tais corpos, afinados com seu imperativo categórico, advindo das mutações discursivas da cultura, e que promove o que Lacan chamou de “subida ao zênite do objeto a”. Ora, se um sujeito fala com seu corpo, como suporte e instrumento da fala, como nos lembra Miller[9], isso implica o falasser que se constitui como um outro nome do inconsciente, que inclui o corpo e o real do gozo, indo além do sujeito do inconsciente, como sujeito de pura lógica. Segundo Miller, “a fala passa pelo corpo e, em retorno, afeta o corpo que é seu emissor”[10], fazendo, assim, ecoar a pergunta do Seminário, livro 19, sobre esses corpos que são aprisionados pelo discurso. E de que modo esse corpo emissor é afetado? Para além dos significados que aprisionam, trata-se de buscar o afeto no que ressoa e ecoa no corpo. “A ressonância, o eco da fala no corpo são o real, a um só tempo, do que Freud chamou de Inconsciente e pulsão. Nesse sentido, o inconsciente e o corpo falante são um único e mesmo real”[11], afirma Miller.
Constatamos, aqui, a estrutura do discurso esclarecida por Lacan com seus quatro polos e o movimento giratório em que se passa de um discurso ao outro. Polos que Lacan localiza enquanto semblante, gozo, mais-de gozar e verdade.
Assim, o novo mal-estar da civilização passa pelo “individualismo crescente que autoriza o sujeito a reivindicar como um direito, um direito do homem, o de gozar à sua maneira”[12].
O desafio da análise na atualidade reside, justamente, em dirigir o tratamento, no sentido de possibilitar que o falasser passe a acreditar no seu inconsciente e, assim, localizar os significantes que o habitam e o aprisionam, como também o constituem.
- O discurso analítico:
Antes de nos perguntarmos sobre o que se passa na análise, faz-se necessário aprofundar na estrutura do discurso analítico. Por ser o avesso do DM, ele põe em evidência o que o DM escamoteia: o hiato que existe entre os discursos e os corpos. Como aponta Lacan nesse último capítulo do Seminário, livro 19, em relação ao DM, é fácil saber o que está entre e o que são os afetos, a saber, os bons sentimentos. Eles preenchem esse hiato. O discurso analítico não só acentua esse hiato, como também o faz aparecer sob a modalidade do impossível. Nesse sentido, o que vai ocupar o lugar do semblante será o objeto; entretanto, esvaziado de qualquer significação.
No discurso analítico, o corpo como semblante ocupa o lugar de agente, descolando-o dos significantes mestres e conectando-o à verdade do gozo que o constitui como sujeito dividido. Nessa torção, os significantes mestres se deslocam do lugar de agentes do discurso para o lugar de produções discursivas agenciadas pelo que escapa da linguagem. O analista é aquele que suporta aparecer em seu destino de objeto a, que, ao mesmo tempo, é dejeto do Outro e causa de desejo.
- A análise:
O que nasce de uma análise nasce no nível do sujeito (…) analisante, por meio (…) da merda que o objeto a lhe propõe na figura de seu analista. É com isso que deve nascer essa coisa fendida (…). Nosso irmão transfigurado, é isso que nasce da conjuração analítica, e é isso que nos liga àquele que chamamos, impropriamente, de nosso paciente.[13]
O objeto a é o que a análise conjura, destacado em meio aos ditos, atordoando o caminho e fazendo o sujeito tropeçar. Nesse sentido, a psicanálise dá um lugar a uma fala inédita.
O analista também é filho do discurso, o que os torna todos irmãos. Há, entretanto, um certo engajamento no dizer que os trouxe até aqui. A interpretação que surge na análise abre a via para que esse engajamento possa surgir na fala analisante.
Para além da interpretação, o analista joga com o ato analítico, produzindo a abertura ao inédito. Uma investigação aberta já há alguns anos no Campo Freudiano nos auxilia a estar à altura da análise do falasser e dos sintomas que o afetam. Ao interrogar sobre o que é analisar o falasser, Miller afirma que “(…) é jogar uma partida entre delírio, debilidade e tapeação. É dirigir um delírio de maneira que esse delírio ceda à tapeação do real”[14].
Para além do enquadre imaginário e simbólico que determina a escolha por um analista, é o real que se infiltra nesse enquadre e que servirá como motor da análise. A interpretação, o corte e o ato são instrumentos à disposição da análise que ligam o sujeito ao sem sentido do Outro barrado. Isso nos ajuda a responder à pergunta sobre o que “fisga” o sujeito em análise, mas tal pergunta produz um giro e se dirige aos analistas: “O que nos liga àquele que embarca conosco”[15] na experiência de uma análise? Essa pergunta coloca no horizonte a psicanálise em intensão e o passe como testemunho dessa subversão na relação com o saber e o gozo.
Aquilo que o discurso do mestre se propõe a “petrificar”, segundo a expressão de Lacan, à torção que esse discurso pode sofrer no giro ao discurso analítico, um sujeito poderá verificar o que lhe resta de gozo e estabelecer uma nova relação com a linguagem.
Eixos de trabalho
A comissão científica propõe quatro eixos em torno dos quais podem ser estabelecidas as escolhas de cada um para produzir seus trabalhos para as jornadas clínicas. Pretendemos, com isso, trazer à luz, através de casos apresentados, o “divino detalhe” desde o qual a psicanálise sustenta sua existência. Cada analista se defronta com o real de sua clínica e nos interessa recolher desses impasses algo de transmissível a respeito do ato analítico.
Eixo 1: Capturas imaginárias e o real do corpo
Eixo 2: Incidências do discurso da Ciência sobre os corpos
Eixo 3: O real da sexuação e o dizer da análise
Eixo 4: O corpo “fora do discurso”