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Os corpos aprisionados pelo discurso …e seus restos

Comissão Científica
Luiz Fernando Carrijo da Cunha (Coordenador)
Mirmila Alves Musse (Coordenadora)
Ana Tereza Groisman
Glacy Gorsky
Marcelo Veras
Leonardo Scofield
Ram Mandil
Ruskaya Rodrigues Maia
Lucio fontana, Spatial Concept, Expectations, 1959.
  1. Do título:

O título desse XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano foi extraído do último capítulo do Seminário, livro 19[1], em que Lacan, depois de uma extensa exploração acerca do “Há um”, desenvolve de maneira bastante condensada a afecção dos corpos pelo discurso. O título do capítulo – no original francês, “Les corps attrapés par le discours” – já nos coloca, de saída, a questão de como entendê-lo a partir da tradução do verbo attraper. Segundo a observação de Marcus A. Vieira, responsável pela versão final da tradução brasileira, “attrapés” foi traduzido como “aprisionados”, podendo dar a ideia de que o discurso é exterior aos corpos e que seriam por ele capturados. Nosso Encontro será também uma oportunidade para precisar, a partir da experiência analítica, o que Lacan estaria indicando na relação entre os discursos e os corpos, ao convocar o verbo “attraper”. Em outras palavras, o que dos corpos é apanhado, pego, fisgado pelos discursos e o que aí se apresenta como fora de alcance? Contudo, deixemos claro: para a psicanálise, não se trata de uma liberação dos corpos, mas de demonstrar, no caso a caso, o que nos corpos não é tomado pelo discurso, pois é a partir daí que o discurso da psicanálise pode operar.

Lacan retoma o tema da sobredeterminação, em Freud, dizendo textualmente que: “(…) em suma, o que ele [Freud] trouxe de essencial? Trouxe a dimensão da sobredeterminação. É disso que dou a imagem, com meu modo de formalizar da maneira mais radical a essência do discurso, na medida em que ele ocupa uma posição giratória em relação ao que acabo de chamar de suporte”[2]. Por isso, como consequência lógica, acrescentamos ao título desse capítulo “…e seus restos”, justamente para colocar em questão essa operação de separação efetuada entre os corpos e os discursos. Essa operação produz um resto inassimilável, tornando-se, ele mesmo, a visada final de uma análise. Esse acréscimo vem responder à dimensão clínica que implica a parceria analítica.

Na “Alocução sobre as psicoses da criança”, Lacan lançou um desafio aos psicanalistas: “como responderemos, nós, os psicanalistas: a segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes?”[3] Por isso, sem cair em uma redução sociológica, a tônica de nosso Encontro será apostar na singularidade da clínica psicanalítica para a interpretação dos sintomas contemporâneos. À medida que o tempo dos mercados comuns não cessa de oferecer semblantes “prêt à porter”, gerando novos processos de segregação, a psicanálise pode dar lugar à invenção de modos singulares para lidar com os encontros com o real produzidos pela civilização.

  1. O discurso:

Mas, qual discurso alcança os corpos hoje? Sobretudo o Discurso do Mestre (DM). Citamos Lacan: “Mas persiste o fato de que, no nível em que funciona o discurso que não é o discurso analítico, coloca-se a questão de como esse discurso conseguiu aprisionar corpos. No nível do discurso do mestre, isso fica evidente. No discurso do mestre, vocês, como corpos, estão petrificados”[4].

A incidência do DM na civilização não é disjunta da sobredeterminação subjetiva, tampouco do gozo que afeta os corpos, na medida em que o dizer equivale ao discurso, para além dos ditos.

Cabe a nós, portanto, delinear a estrutura do discurso do mestre contemporâneo e, a partir desse ponto, investigar de que modo tais corpos são aprisionados, ou seja, como eles são constituídos e responsivos aos significantes mestres da época. Com isso, entramos no campo do sintoma.

Seguindo, agora, pela referência de Jacques-Alain Miller[5], no caminho de elaborar a estrutura do discurso de dominação contemporâneo, percebemos que os efeitos conjugados das luzes e do capitalismo avançam silenciosamente “nas profundezas do gosto”[6], contribuindo para evaporar o pai. Das técnicas fertilizadoras que reduzem o pai ao espermatozoide às guerras e catástrofes climáticas, tudo nos leva à desvalorização do patriarcado ou, como afirma Miller, ao “rebaixamento à biologia da função paterna”[7].

Assim, podemos interpretar o mal-estar contemporâneo a partir da aliança entre o discurso capitalista e o discurso da ciência, ambos ocupando o vazio deixado pela vacância do pai.

  1. Os corpos:

A pluralidade dos corpos à qual Lacan se refere não nos é indiferente, pois, no que diz respeito ao gozo (só o corpo vivo goza), é o corpo a corpo que está em jogo. Citamos Lacan: “Não é por isso que o gozo é sexual, pois acabo de lhes explicar, este ano, que o mínimo que se pode dizer é que ele não é indireto, esse gozo. É o gozo corpo a corpo. (…) É isso que faz com que possa haver nessa história vários corpos aprisionados, e até série de corpos”[8].

A pluralidade dos corpos, que implica essencialmente o gozo, seria a tradução da incidência do DM sobre tais corpos, afinados com seu imperativo categórico, advindo das mutações discursivas da cultura, e que promove o que Lacan chamou de “subida ao zênite do objeto a”. Ora, se um sujeito fala com seu corpo, como suporte e instrumento da fala, como nos lembra Miller[9], isso implica o falasser que se constitui como um outro nome do inconsciente, que inclui o corpo e o real do gozo, indo além do sujeito do inconsciente, como sujeito de pura lógica. Segundo Miller, “a fala passa pelo corpo e, em retorno, afeta o corpo que é seu emissor”[10], fazendo, assim, ecoar a pergunta do Seminário, livro 19, sobre esses corpos que são aprisionados pelo discurso. E de que modo esse corpo emissor é afetado? Para além dos significados que aprisionam, trata-se de buscar o afeto no que ressoa e ecoa no corpo. “A ressonância, o eco da fala no corpo são o real, a um só tempo, do que Freud chamou de Inconsciente e pulsão. Nesse sentido, o inconsciente e o corpo falante são um único e mesmo real”[11], afirma Miller.

Constatamos, aqui, a estrutura do discurso esclarecida por Lacan com seus quatro polos e o movimento giratório em que se passa de um discurso ao outro. Polos que Lacan localiza enquanto semblante, gozo, mais-de gozar e verdade.

Assim, o novo mal-estar da civilização passa pelo “individualismo crescente que autoriza o sujeito a reivindicar como um direito, um direito do homem, o de gozar à sua maneira”[12].

O desafio da análise na atualidade reside, justamente, em dirigir o tratamento, no sentido de possibilitar que o falasser passe a acreditar no seu inconsciente e, assim, localizar os significantes que o habitam e o aprisionam, como também o constituem.

  1. O discurso analítico:

Antes de nos perguntarmos sobre o que se passa na análise, faz-se necessário aprofundar na estrutura do discurso analítico. Por ser o avesso do DM, ele põe em evidência o que o DM escamoteia: o hiato que existe entre os discursos e os corpos. Como aponta Lacan nesse último capítulo do Seminário, livro 19, em relação ao DM, é fácil saber o que está entre e o que são os afetos, a saber, os bons sentimentos. Eles preenchem esse hiato. O discurso analítico não só acentua esse hiato, como também o faz aparecer sob a modalidade do impossível. Nesse sentido, o que vai ocupar o lugar do semblante será o objeto; entretanto, esvaziado de qualquer significação.

No discurso analítico, o corpo como semblante ocupa o lugar de agente, descolando-o dos significantes mestres e conectando-o à verdade do gozo que o constitui como sujeito dividido. Nessa torção, os significantes mestres se deslocam do lugar de agentes do discurso para o lugar de produções discursivas agenciadas pelo que escapa da linguagem. O analista é aquele que suporta aparecer em seu destino de objeto a, que, ao mesmo tempo, é dejeto do Outro e causa de desejo.

  1. A análise:

O que nasce de uma análise nasce no nível do sujeito (…) analisante, por meio (…) da merda que o objeto a lhe propõe na figura de seu analista. É com isso que deve nascer essa coisa fendida (…). Nosso irmão transfigurado, é isso que nasce da conjuração analítica, e é isso que nos liga àquele que chamamos, impropriamente, de nosso paciente.[13]

O objeto a é o que a análise conjura, destacado em meio aos ditos, atordoando o caminho e fazendo o sujeito tropeçar. Nesse sentido, a psicanálise dá um lugar a uma fala inédita.

O analista também é filho do discurso, o que os torna todos irmãos. Há, entretanto, um certo engajamento no dizer que os trouxe até aqui. A interpretação que surge na análise abre a via para que esse engajamento possa surgir na fala analisante.

Para além da interpretação, o analista joga com o ato analítico, produzindo a abertura ao inédito. Uma investigação aberta já há alguns anos no Campo Freudiano nos auxilia a estar à altura da análise do falasser e dos sintomas que o afetam. Ao interrogar sobre o que é analisar o falasser, Miller afirma que “(…) é jogar uma partida entre delírio, debilidade e tapeação. É dirigir um delírio de maneira que esse delírio ceda à tapeação do real”[14].

Para além do enquadre imaginário e simbólico que determina a escolha por um analista, é o real que se infiltra nesse enquadre e que servirá como motor da análise. A interpretação, o corte e o ato são instrumentos à disposição da análise que ligam o sujeito ao sem sentido do Outro barrado. Isso nos ajuda a responder à pergunta sobre o que “fisga” o sujeito em análise, mas tal pergunta produz um giro e se dirige aos analistas: “O que nos liga àquele que embarca conosco”[15] na experiência de uma análise? Essa pergunta coloca no horizonte a psicanálise em intensão e o passe como testemunho dessa subversão na relação com o saber e o gozo.

Aquilo que o discurso do mestre se propõe a “petrificar”, segundo a expressão de Lacan, à torção que esse discurso pode sofrer no giro ao discurso analítico, um sujeito poderá verificar o que lhe resta de gozo e estabelecer uma nova relação com a linguagem.

Eixos de trabalho

A comissão científica propõe quatro eixos em torno dos quais podem ser estabelecidas as escolhas de cada um para produzir seus trabalhos para as jornadas clínicas. Pretendemos, com isso, trazer à luz, através de casos apresentados, o “divino detalhe” desde o qual a psicanálise sustenta sua existência. Cada analista se defronta com o real de sua clínica e nos interessa recolher desses impasses algo de transmissível a respeito do ato analítico.

Eixo 1: Capturas imaginárias e o real do corpo

Eixo 2: Incidências do discurso da Ciência sobre os corpos

Eixo 3: O real da sexuação e o dizer da análise

Eixo 4: O corpo “fora do discurso”


[1] LACAN, J. (1971-1972) “Os corpos aprisionados pelo discurso”. In: O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, cap. XVI, p.213 e seguintes.
[2] Idem, pp. 216-217.
[3] LACAN, J. “Alocução sobre as psicoses da criança”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p.361.
[4] LACAN, J. (1971-1972) Op. cit., p. 220.
[5] MILLER, J-A. “Le père devenu vapeur”. In: Mental: Revue Internationale de psychanalyse. Paris: EFP, nº 48, novembro 2023, pp.13-16.
[6] Idem, p. 14. No original: “dans les profondeurs du goût”. Tradução livre para uso exclusivo neste argumento.
[7] Idem, Ibidem. Tradução livre para uso exclusivo neste argumento.
[8] LACAN, J. (1971-1972) Op. cit., p. 217.
[9] MILLER, J-A. “Hábeas Corpus”. In: Site do Congresso da AMP 2018. Disponível em: https://congresoamp2018.com/pt-pt/textos/habeas-corpus/
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] MILLER, J-A. (2000-2001) El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 82. Tradução livre.
[13] LACAN, J. (1971-1972) Op. cit., p. 227.
[14] MILLER, J-A. (2014) “O inconsciente e o corpo falante”. Disponível em: https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9
[15] LACAN, J. (1971-1972) Op. cit., p. 226.
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