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A Comissão de Referências Bibliográficas vem selecionando diversas passagens extraídas de livros e artigos orientadores para as pesquisas em torno do tema do XXV EBCF: Corpos aprisionados pelo discurso …e seus restos.

Algumas dessas passagens, comentadas por colegas que gentilmente toparam o desafio de avançar um pouco mais ou de nos provocar com novas questões,  serão publicadas nos boletins .

No momento final de seu ensino, o imaginário define-se pela crença de que o ser falante possui um corpo – ou seja, o imaginário é o corpo que se acredita existir. Uma coisa, porém, é a crença em se ter um corpo; outra é o corpo propriamente dito. O corpo do ser falante não é o cadáver. O corpo do cadáver é consistente e não se evapora quando de sua consumação. O corpo vivo do ser falante é evanescente e inconsistente, escapa-lhe a todo o tempo.

(Santiago, J. “O novo imaginário é o corpo”. In: Derivas analíticas. Revista digital de psicanálise e cultura da EBP-MG. Belo Horizonte: EBP, março de 2024. Disponível aqui.)

Rosana Paulino
Paraíso tropical, 2017
Impressão digital em tecido, colagem e costura.

O Novo Imaginário e o enodamento possível

Marcelo Magnelli (EBP/AMP)

Lacan, no início de seu ensino, reduz o Imaginário a i(a). Com a topologia do nó borromeano, Real, Simbólico e Imaginário ganham independência e perdem hierarquia entre si. Jésus Santiago[1] parte destes pontos para chegar à citação destacada. É a partir da perspectiva de que o objeto a curto-circuita a relação imaginária que Lacan “esburaca” o imaginário, chegando à noção de que o corpo que interessa à psicanálise não é o correlato à imagem narcísica, esférica e imaculada. Também não é um corpo “corpsificado” (cadaverizado) pela ação simbólica. Seu caminho vai, então, da esfera ao toro, chegando ao nó borromeano. O corpo do falasser é vivo porque dele transborda gozo e sempre escapa à imagem especular.

O Imaginário é o corpo na medida em que “é contíguo ao real do gozo”[2], sustentando a imagem por meio dos restos do real do gozo. Esta dimensão do Imaginário caminha, pari passu, à noção de corpo destacada por Jacques-Alain Miller em seu curso O Um sozinho: um corpo estrangeiro, um corpo gozante, um corpo que se goza[3]. Ou seja, um corpo que goza sozinho, sem fazer laço, e que corresponde ao autoerotismo freudiano.

“UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium [nan-na Kum]. Há que dizer assim: ele teihum…, e não: ele éum… (corp/aninhado). É o ter, e não o ser, que o caracteriza. (…) UOM tem [a], no princípio. Por quê? Isso se sente e, uma vez sentido, demonstra-se”[4].

Ao modo da escrita joyceana, Lacan aponta que se trata de ter – e não de ser – um corpo. Laurent destaca que esta é a “terência”[5], ocorrida primeiro para que o gozo possa se inscrever nele. Primeiro se experimenta o gozo para depois poder produzir-se um saber significante sobre o corpo. Ou seja, desse corpo marcado pelo gozo de lalíngua, virão efeitos de acontecimento que possibilitarão a constituição do inconsciente articulado como um saber.

Podemos dizer que o “aprisionamento” do corpo é “não-todo”, comportando algo da dimensão do forçamento, ao introduzir uma diferença quantitativa de gozo. Estamos na clínica do acontecimento de corpo, partidária da noção de foraclusão generalizada. Assim, importa mais uma mutação de gozo do que um franqueamento[6]. Nesse sentido, cada falasser precisa se haver com o gozo como tal, corporal, experimentado como fenômeno. Interessa-nos o modo como o falasser faz, do fenômeno, um acontecimento de corpo, constituindo, assim, um sinthoma enquanto um quarto nó, que tem efeito de enodar os três registros, de modo a reparar o lapso, desestabilizante, no mesmo ponto onde ocorre. O sinthoma, então, é um acontecimento de corpo, contingente, que dá lugar ao sentido[7]. Nesta perspectiva, não se trata de revelar algo, mas de aparelhar gozo. Estaria aí um dos modos de tratarmos a dificuldade com o termo “aprisionar”, tomando-o a partir da noção de enodamento, sinthomático, cujos restos não cessam de reiterar?

Poderíamos dizer que o EGO de Joyce, sinthomatizado por sua escrita – que visava a manter os universitários ocupados por 300 anos –, enoda os três registros sem o recurso de uma imagem corporal i(a), auxiliando no ordenamento de seu circuito de gozo, ao promover seu aparelhamento “sem ceder ao sentido”, como diz Miller[8]? Nesse caso, parece que temos um nome (EGO) no lugar do corpo (enquanto imagem corporal, ego).


[1] Santiago, J. “O novo imaginário é o corpo”. In: Derivas analíticas. Revista digital de psicanálise e cultura da EBP-MG. Belo Horizonte: EBP, março de 2024. Disponível aqui.
[2] Idem.
[3] Miller, J.-A. (2010-2011) Curso da Orientação Lacaniana: O Um sozinho. Inédito.
[4] Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 561.
[5] Laurent, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016, p. 57.
[6] Miller, J-A. “Mutaciones de goce”. In: Sutilezas Analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2011, p. 163-180.
[7]Miller, J-A. (2010-2011). Op. Cit. Destaco o trecho: “O sinthoma é definido como um acontecimento de corpo que evidentemente dá lugar ao sentido. A partir desse acontecimento uma semântica dos sintomas se desenvolve, mas, na raiz dessa semântica há um puro acontecimento de corpo” (tradução livre).
[8] Miller, J-A. “Lacan com Joyce”. In: Correio. N. 65. São Paulo: EBP, abril de 2010, p. 58.

El cuerpo siempre ha sido alterado por rituales impuestos por el discurso social. Eso no es una novedad de la época. Lo que es una novedad de la época es que esas alteraciones no son ahora reguladas, pautadas, ritualizadas por ese discurso [social]. Esa es a mi juicio una característica inédita de nuestra época. La tecnologia y el mercado han entendido que es necessário para los seres parlantes marcar, modificar, alterar sus cuerpos, sea por motivos psicopatológicos, estéticos o de goce. Y tienen mucho para ofrecer… El cuerpo, para ser um cuerpo, siempre es alterado.

(Tarrab, M. “Esplendor de los cuerpos y de los discursos”. In: El decir y lo real. Olivos: Grama Ed, 2023, p. 67-82)

Perda de rumo e foraclusão das coisas do amor

Elizabete Siqueira (EBP/AMP)

A passagem destacada de Maurício Tarrab me fez pensar, acompanhando suas proposições, que o corpo tem ocupado um lugar central ao longo dos tempos e é um dos temas prediletos no discurso contemporâneo das sociedades ocidentais. Essa paixão irrefreável pelo corpo é uma das consequências da estruturação individualista de nossa sociedade, a ponto de Éric Laurent afirmar, sem meias palavras: “O corpo humano é um Deus… Ele é suposto ser o fundamento de uma ciência da felicidade”[1].

Porém, o que se nos apresenta é que a contemporaneidade é ambivalente em relação ao corpo. Por um lado, há uma visão do corpo como esplendoroso, corpo glorioso que pode ser totalmente reciclado pela tecnociência, lugar de resistência, veículo e receptáculo de sensações e gozo. Por outro lado, há um ódio e o corpo é esvaziado de qualquer valor, encarnando a parte maléfica que deve ser corrigida. Há um discurso que o menospreza e o abomina por sua vulnerabilidade, precariedade e finitude, percebendo-o como um corpo entrave[2].

O corpo se tornou objeto de uma busca contínua, infinita, que fala da necessidade de se encontrar uma ancoragem de si. Na contemporaneidade, ele se apresenta como um corpo que se modela e que tende a se metamorfosear em roupa de carne, que se gerencia, e se muda à vontade. Em suma, um negócio que se domina. Em outras palavras, o corpo significa algo a se fazer moldar, a se renovar, a se transformar. É um corpo disponível a qualquer coisa, corpo mercantilizado, marcado, pressionado de formas tão fortes quanto contraditórias.

Haber e Renault prenunciaram que o mercado da forma e da saúde orientaria a economia do século XXI para a biotecnologia[3]. Para eles, o neoliberalismo não perdoa os corpos, haja vista a existência de todo um mercado de consumo dirigido ao corpo, provocador de identidades em ruptura, encenadas nas perturbações corporais. Destacam a existência de batalhas com e pelo corpo, atualizadas sob a forma de múltiplas ideologias que avalizam violências simbólicas sobre ele, com fins de naturalizar opressões invisíveis que o mercantilizam e de ocultar dominações subliminares. Podemos deduzir que há um canibalismo disfarçado que devora o corpo, modificando-o e maltratando-o.

Tal voracidade dirigida ao corpo é o signo de que, nesta civilização do consumo, o gozo está solto, sem rédeas, buscando uma plenitude imaginária inexistente e impossível, de um gozar até não poder mais, em uma relação direta com o objeto. Em resumo, a civilização ocidental e capitalista provoca a troca da dialética do desejo pelo gozo autoerótico. Tal oferta produz sujeitos incapazes de lidar com a falta e, consequentemente, com as coisas do amor. Por tudo isso, “é um erro acomodar-se à perda de rumo da época”[4].


[1] Laurent, É. Entrevista para o Jornal La nación. Exibição em 9 de julho de 2008. Divulgação pela mala-direta da EBP-Veredas, em 01/08/2008. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, 2008.
[2] Siqueira, E. R.A. Muralhas da inibição. Curitiba: CRV, 2018.
[3] Haber, S. & Renault, É. Cuerpos dominados, cuerpos en ruptura. Buenos Aires: Nueva Visión, 2007.
[4] Tarrab, M. “Esplendor de los cuerpos y de los discursos” Op. cit., p. 67-82.
Arthur Bispo do Rosário
Título atribuído: “Carrossel”
Coleção Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

O que distingue o discurso do capitalismo é isto: a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei – rejeição de quê? Da castração. Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, de coisas do amor, meus bons amigos. Como vocês veem, não é pouca coisa, certo? (Lacan, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Zahar, p. 88.)

Certo, dr. Lacan, não é pouca coisa

Louise Lhullier (EBP/AMP)

Uma catástrofe destrói vidas, cidades e sonhos no Rio Grande do Sul. Não foi surpresa. Há muitos anos, vários estudos alertavam para o perigo. Uma enchente ocorrida seis meses atrás anunciava o que viria. Não foi suficiente. O “não querer saber nada disso” prevaleceu.

Júlia Dantas[1] descreve como ela e o marido continuaram “confiantes” e “otimistas” mesmo quando andaram com água até os joelhos para ir às compras no sábado, e como tudo parecia “absolutamente normal” no resto do bairro. Naquela noite a água começou a invadir seu apartamento. A força do desejo foi o motor de uma luta que se estendeu até o domingo, para salvar suas coisas, que “nunca são apenas coisas”. Só desistiram quando “tudo começou a ruir”, com a água subindo pelos ralos, vertendo do chão e das paredes. Saíram com água pela cintura.

A solidariedade fez chegar às centenas de milhares de desabrigados um grande volume de doações. Nesse cenário, o governador do Estado manifestou publicamente sua preocupação com os prejuízos que esse volume de donativos traria para os comerciantes gaúchos, sugerindo que as doações “físicas” geravam um problema, pois as pessoas deixariam de comprar… Muito criticado, desculpou-se.

“Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, de coisas do amor”[2], disse Lacan há cinquenta anos. Nas palavras do governador, o verdadeiro Mestre[3] emergiu furando o semblante precariamente constituído no pífio agradecimento à solidariedade que antecedeu seu apelo pelo redirecionamento das doações. Ante a fome, o frio e o desamparo dos que viram tudo ruir, a solidariedade, dos que ainda não deixaram de lado as coisas do amor, se articulou pela via dos discursos, do que faz laço. O apelo pela salvação do comércio foi na direção contrária, reduzindo a falta à mera falta das coisas que circulam no Mercado, esse Mestre atual que desconhece a castração, que não faz barreira ao gozo e, portanto, não constitui o laço social. Se revela aí uma variante do “não querer saber nada disso”.

Tanto na invasão das águas quanto do gozo, as barreiras se mostram cada vez mais débeis em sua função de freio, deixando um rastro de destruição em sua passagem para além do que organizava seus caminhos sob o comando dos ideais, dos significantes-mestres. O fluxo é inexorável e acelerado, sem os limites da impossibilidade, do corte e da falta[4], aí onde a castração foi forcluída. Haverá resposta possível da psicanálise?

Em tempos de queda dos significantes-mestres, sob o comando do objeto em aliança com o “não querer saber nada disso”, tudo o que nos resta é a palavra.  Em um texto de Gil Caroz[5], encontro três referências, frutos de sua leitura de Lacan[6]: a aposta na angústia como algo que pode fazer ponto de basta, o papel do psicanalista como aquele que se dedica a provocar a vergonha[7] e vergonha e responsabilidade como “dois termos para designar posições subjetivas que fazem barreira à pulsão de morte”[8].  Talvez se pudesse acrescentar, com Guimarães Rosa, a coragem, “aquilo que a vida quer da gente”[9].


[1] https://juliaydantas.substack.com/p/a-casa-alagada
[2] Lacan, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Zahar, p. 88.
[3] Vide Fabián Fajnwaks em https://ebp.org.br/nordeste/jornadas/2022/2022/08/16/o-discurso-capitalista-e-o-impossivel/
[4] Idem.
[5] Caroz, G. “L’Ére de irresponsabilité”. In: Mental, n.39, juillet 2019, p. 26. (Tradução da autora)
[6] Lacan, J. O triunfo da religião precedido de discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
[7] Caroz, G. Op. cit. (Tradução da autora)
[8] Idem.
[9] Rosa, J. G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

Notem, por outro lado, que se há algo que até hoje deu um enquadre ao circuito do supereu na história humana, é o que Lacan chamou Discurso do Mestre, o qual não é um movimento perpétuo, e permite uma produção e uma separação do mais de gozar, do gozo suplementar. De fato, o discurso do mestre captou o termo subjetivo e esse elemento de gozo suplementar que chamamos a, e os enquadrou a fim de limitar estritamente sua cópula. Por isso, [esse discurso] é eminentemente civilizador: rompe o circuito, se estabelece sobre uma quebra, [faz] uma barreira entre o sujeito e esse gozo suplementar, e corrige, pois, este impasse crescente da nossa civilização. (Miller, J.-A. El banquete de los analistas. Buenos Aires: Paidós, 2011, p. 307. Tradução nossa.)

Este impasse crescente da nossa civilização

Cleyton Andrade (EBP/AMP)

Enquanto escrevo, o desastre no Rio Grande do Sul ainda está em curso. Há muito sofrimento e perdas envolvidas. Porém, infelizmente, muitos o transformam em palco para mais uma das numerosas operações que resultam em impasses para a noção de verdade. Defender a verdade parece algo antiquado (Miller, 2011) e muitas vezes, inútil. Afinal, o mecanismo em jogo não é apenas sobre a mentira e nem sobre o falso como oposição ao verdadeiro. Dizer ostensivamente que não há Estado, que não há instituições, nem organizações, com afirmações peremptórias de ações supostamente exclusivistas dos civis que salvam civis, diante da alegada inação do Estado e até de dificuldades impostas por ele, se apresenta como um dos nomes reeditados do sujeito liberal. Esse mesmo sujeito é central e fundamental no capitalismo, por ser ele mesmo uma expressão de uma vontade que transborda barragens e inunda de gozo seu circuito. Esse senhor do capitalismo, que reaparece nos movimentos radicais e reacionários de extrema direita, nos ajuda a entender um trecho do curso O Banquete dos analistas, de Miller. E ambos nos permitem atualizar uma leitura sobre como o capitalismo não só absorve, como retroalimenta os impasses da civilização, num movimento perpétuo.

No caso do Brasil, temos a demonstração de como uma face do capitalismo se alia muito bem ao fascismo não apenas pela monetização vinda destes movimentos, mas, sobretudo, por uma identidade conceitual que sobrepõe uma versão do sujeito liberal do capitalismo ao homem de bem, com sua pátria, sua família, seu Deus, e sua liberdade. Lendo Miller, temos a psicanálise como oposição, como um caminho contrário a esse fundamento perverso da civilização (Miller, 2011). Cabe à psicanálise estar contra qualquer mecanismo que se coloque como uma volatização do real (Miller, 2011) desencadeada por um mestre moderno e liberal acoplado ao mais-de-gozar, ao a, a ponto de transformar o real de uma forma que não ocorrera enquanto imperava a ação civilizatória do Discurso do Mestre. Hoje estamos confrontados cotidianamente com uma junção do extremismo/radicalismo com o capitalismo. Não é mais uma novidade nas mãos do psicanalista a percepção de que o desejo é um efeito que depende de uma articulação entre S1 e S2 (Miller, 2011). O outro lado da partida a ser jogada também sabe muito bem disso e traduz sob diversas formas de rentabilidade, seja monetária, financeira ou política, com efeitos devastadores no empreendimento civilizatório. Manipulam isso muito bem, na condição de que tudo vale para as núpcias desse sujeito com o gozo suplementar.

Tratemos aqui, a partir de Miller, de algumas premissas: 1) o mal-estar na Cultura é chamado de impasses da civilização/Cultura; 2) isso se refere a um circuito do Supereu, uma vez que, para Freud, a Cultura se orienta pela ética do Supereu; 3) há uma antinomia entre psicanálise e Cultura, posto que não seguem a mesma ética.

Em poucas palavras: para viver em sociedade seria necessário ceder em seu desejo como uma forma de renunciar ao gozo da pulsão; contudo, essa separação exigida com relação ao mais-de-gozar, a, não apazigua o Supereu, uma vez que ele se apropria desse gozo, fomentando um circuito infernal de retroalimentação. Se a figura do casamento foi essencial a Freud por indicar esse circuito interminável, a ruptura com o casamento parecia um caminho vislumbrado. O problema é que o gozo a que se renuncia serve ao Supereu. Ele goza da renúncia ao gozo.

Há um circuito que vai da incidência do Supereu sobre a pulsão, exigindo que abdiquemos de uma satisfação, produzindo e separando o objeto a; e depois, um retorno dessa produção que foi separada, para o mesmo Supereu. Aquilo que foi separado retorna também como gozo. Esse é o caráter perpétuo do movimento constante da Cultura. A vontade moral se encontra com a vontade de gozo – é por onde se pode ler algo da perversão na civilização, sob o imperativo Goze!

A diferença a ser introduzida sobre essas vontades sobrepostas passa pelo conceito de discurso, sobretudo como algo oposto a esse movimento perpétuo. Ou seja, o conceito de discurso, necessariamente, implica a ideia de barragem, barreira, limite, contenção, ruptura. Por exemplo, o Discurso do Analista impõe um obstáculo intransponível entre o S1 e S2 que ocupam respectivamente o lugar da produção e o lugar da verdade, impedindo um retorno ao começo do circuito. Esse é o modo do Discurso do Analista sustentar uma barragem que impeça o transbordamento da vontade de gozo.

O que operou um limite na história da civilização foi o Discurso do Mestre, que captou tanto o sujeito quanto o gozo e sustentou uma barreira, um limite para ambos. Essa é a dimensão civilizatória do Discurso do Mestre: impedir a cópula entre $ e a. Há uma impossibilidade de passagem entre produção e verdade. Contudo, o surgimento do capitalismo parece ter desestabilizado essa função civilizatória do Discurso do Mestre ao retomar um caminho que reitera o circuito perpétuo da Cultura, restabelecendo o acesso entre a e $, conectando-os. Por isso o capitalismo não é, de fato, um discurso, posto que falta a ele um elemento fundamental: entre produção e verdade, por definição, deve haver uma impossibilidade (DM e DA) ou impotência (DH e DU). No capitalismo o mais-de-gozar não está na realidade transformada em fantasia, mas sim como algo sustentado na própria realidade, por isso ele pode se valer muito bem do negacionista, das fake News, e das demais estratégias de movimentos extremistas e reacionários, todos nesse caminho contrário à psicanálise, com suas formas de um mais-de-gozar desregulado.

Orlan. “Self-Hybridations Maya”, n.13, 2022.

Estou falando da variável aparente. A variável aparente x constitui-se de que o x marca um lugar vazio naquilo de que se trata. A condição para isso funcionar é que coloquemos exatamente o mesmo significante em todos os lugares reservados vazios. Essa é a única maneira da linguagem chegar a alguma coisa. E foi por isso que me expressei nesta formulação: não existe metalinguagem” (Lacan, J. [1971-1972] O seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 12).

Romildo do Rêgo Barros (AME da EBP/AMP)

O sintoma, entre o sim e o não

Começo lembrando uma resposta dada por Ariano Suassuna, bem à sua maneira, para alguém que estranhava o seu medo de avião:

Ariano, dizia esse amigo, carro é muito mais perigoso do que avião… Se numa curva topa com um buraco pode sofrer um acidente, muitas vezes fatal.

E avião, respondeu Ariano com outra pergunta, que para onde vai leva embaixo dele um buraco…?[1]

Até aí, temos uma boa anedota, feita para rir, como todo sintoma neurótico quando é usado como argumento. Torna-se um pouco mais sisuda se acrescentarmos uma conclusão: o buraco onipresente sob o avião é condição do voo. Não há voo sem buraco. Enquanto o carro na curva depende da contingência de haver ou não um buraco (nunca é garantido que haja), o voo do avião tem o buraco como necessidade, uma vez que surge justamente na separação entre a massa do avião e o solo. Suassuna, talvez sem querer, aponta para um além do vazio, para um ponto em que já não há só uma piada, mas condição da linguagem e do sintoma.

Lacan diz, na sua frase, que “A variável aparente x constitui-se de que o x marca um lugar vazio naquilo de que se trata”. Ou seja, aquilo de que se trata (“ce dont il s’agit” – expressão francesa difícil de se encontrar um correspondente elegante em português), só opera se houver um lugar vazio, marcado por Lacan com um x.

Como no argumento fóbico de Ariano, o negativo é condição do positivo. É a partir daí que surge um terceiro termo como defesa sintomática: a esperança de percorrer uma estrada sem rupturas, para o carro, ou a defesa que o fóbico encontra no próprio medo, para o avião.

O terceiro termo, naturalmente, é variável. Pode-se ter medo de carro, assim como se pode ser mais ou menos indiferente às incertezas do avião. O que se pode dizer é que não há linguagem sem o vazio que Lacan representou com a incógnita.

Essa discussão se torna particularmente importante nos nossos tempos, quando a civilização, e nossa clínica em consequência, põe em confronto o desejo e o gozo, o que altera muitas vezes o estatuto do sintoma.


[1] Para aproveitar a anedota contada por Ariano Suassuna, não vou distinguir neste comentário o vazio do buraco.

“Mas persiste o fato de que, no nível em que funciona o discurso que não é o discurso analítico, coloca-se a questão de como esse discurso conseguiu aprisionar [attraper] corpos. No nível do discurso do mestre/senhor, (…) vocês, como corpos, estão petrificados [pétris] (Lacan, J. [1971-1972] O seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 220).

Maria Helena Barbosa (EBP/AMP)

Quando Lacan afirma que “No nível do discurso do mestre/senhor, vocês, como corpos, estão petrificados”, está aludindo a uma certa homologia que ele produziu a respeito da estrutura entre Michelangelo e sua obra, e o discurso do mestre/senhor.

Lembramos da famosa frase dita por Michelangelo ao ser indagado por Leonardo Da Vinci quando do término da escultura de Davi: “Eu apenas tirei da pedra de mármore tudo que não era Davi”.

Lacan, na introdução do capítulo XVI do Seminário 19: …ou pior, aborda o escultor e sua obra para apontar que, até para Michelangelo, a obra sempre vem sob um comando. “O que comanda é o Um. O Um cria o Ser. (…) o Um não é o Ser, ele constitui [fait] o Ser” (p. 214).

Ele segue dizendo que: “A relação do homem com um mundo seu (…) nunca foi mais que uma presunção a serviço do discurso do mestre/senhor” (p. 215).

Também vale lembrar outra das principais obras do artista, abordada por Freud em um extenso artigo de 1914. Conta-se que ao terminar de esculpir a estátua de Moisés, Michelangelo, fascinado diante da beleza da imponente escultura, bateu com um martelo no joelho direito dela produzindo uma fratura no mármore e gritou: “Parla!” [Fala!]

Michelangelo é um dos grandes nomes do Renascimento italiano que despontou no século XV, caracterizando uma nova concepção sobre a vida humana. Sua formação humanista e a forte influência da cultura clássica se refletem na produção de suas pinturas e esculturas.

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