Elisa Alvarenga (AME da EBP/AMP) A “Nota sobre o pai”[1] de Jacques Lacan foi um…
A marca do analista
Sérgio Laia (AME da EBP/AMP)
A frase com que Lacan conclui a última lição do Seminário …ou pior parece-me reiterar o que esse título apresenta de inquietante*. Referindo-se de forma surpreendente à intensificação do racismo já no início da década de 1970, ou seja, em uma época culturalmente notabilizada pela difusão de vários movimentos culturais libertários e por uma grande reviravolta no âmbito dos chamados “costumes”, Lacan[1] nos deixa o seguinte alerta: “Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele”. Em francês, inclusive por se tratar da última fala de Lacan naquela circunstância, o tom me parece ainda mais sombrio: “Vous n’avez pas fini d’en entendre parler”[2], e eu o traduziria assim: “Vocês mal acabaram de ouvir falar disso”. Em outros termos, e já conjugando com o título do Seminário: o pior ainda está por vir.
De fato, se considerarmos o que se passa atualmente em nosso mundo, esse alerta de Lacan se efetiva a olhos vistos, inclusive na associação insólita entre a escalada do racismo e a proliferação dos dizeres sobre a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Sem dúvida, não se trata de considerar que, enfim, somos todo(a)s livres, iguais e irmãos-irmãs, mas que a expansão do racismo se faz mesmo na conquista do que proclamamos como nossos direitos os mais libertários, igualitários e fraternais. Ao mesmo tempo, afirmar que existe tal associação tampouco implica, para a psicanálise de orientação lacaniana adotar uma postura conservadora e desprezar as conquistas que temos experimentado política e culturalmente. Trata-se apenas de não nos deixarmos fascinar por tais conquistas ou pelo que elas prometem e, aqui, usando nessa advertência o verbo fascinar, me valho de outro alerta de Lacan[3], aquele pelo qual sustentou que, diferente do que acontece ao Coro (essa figuração, na tragédia grega, dos espectadores), os analistas não ficassem enredados pela “imagem…, fascinante, da própria Antígona”. Essa heroína, em sua pura determinação quanto ao desejo, em nome do que lhe era mais único e insubstituível, em sua oposição à ordem vigente que acaba por vitimá-la, antecipa – no longínquo século V a.C. – muito do que encontramos hoje em nosso mundo tomado pelos imperativos da satisfação.
Porém, o tom sombrio da última frase e do próprio título do Seminário 19 deixa de conduzir-nos a uma espécie de beco sem saída porque, sem perder sua força e mesmo o que eu chamaria de sua dimensão real, é inseparável – sobretudo para a orientação lacaniana – do que já foi dito desde o início mesmo desse Seminário e que aparece na seguinte observação sobre as reticências que precedem o …ou pior: nos “textos impressos”, elas são usadas comumente “para marcar ou fazer um lugar vazio” e, então, tal título “enfatiza a importância desse lugar vazio, e demonstra, assim, que essa demarcação do vazio “é a única maneira de dizer alguma coisa com a ajuda da linguagem”[4]. Também nesse início, Lacan[5] ressalta que pior, como advérbio, apresenta-se “disjunto de alguma coisa que é chamada a algum lugar, justamente o verbo, que está substituído aqui pelas reticências”. Para saber qual é o verbo aludido por essas reticências e que faz uma espécie de contraponto ao advérbio pior, “basta balançar a letra com que começa a palavra pior” e, nesse balanço, o p se torna d, permitindo que, em francês, o que se contrapõe ao pior (pire) se apresente no verbo dire, ou seja, “dizer”[6]. Logo em seguida, Lacan[7] destaca que não se trata pura e simplesmente do dizer, mas de “um dizer”, aquele que ele havia abordado no Seminário 18 e que, eu acrescentaria, se transformou em um de seus mais famosos aforismos: “não há relação sexual”.
Portanto, se o racismo, como me parece nos indicar Lacan ao final do Seminário 19, é uma das faces do pior, inclusive porque ele se fortalece e se expande no avanço mesmo dos discursos que proclamam que “somos todo(a)s irmãos-irmãs” e que, atualmente, se difundem como ser brother, ser bro, ser mano e, também, como brotheragem, sororidade, “mexeu com uma, mexeu com todas”, é ainda mais decisivo que os analistas não se deixem fascinar por tais proclamações, embora possam reconhecer-lhes – em circunstâncias marcadas pela singularidade – alguma pertinência. Essa dimensão decisiva se vale, a meu ver, do que está aludido pelas reticências que antecedem o “ou pior” e que é, efetivamente, diverso do que se apresenta como igual, todo(a)s, mesmo. Os analistas, assim, para fazerem frente ao pior, se valem não dos ideais (por mais nobres, justos e libertários que estes sejam), mas de um dizer: a relação sexual não existe. Em outros termos, a inexistência da relação sexual, de uma proporção ou paridade entre os sexos, é o furo mesmo do qual se vale a psicanálise de orientação lacaniana para se contrapor ao pior.
Porém, essa posição que Lacan indica aos analistas não é aquela de uma mera exterioridade com relação ao mundo e àqueles que o habitam. Por isso, no Seminário 19, também vamos encontrar a seguinte formulação: “nós somos irmãos de nosso paciente na medida em que, como ele, somos os filhos do discurso”[8]. A meu ver, a referência para essa filiação discursiva comum entre analista e paciente é o modo como, por exemplo, o discurso do mestre “pega”, attrape ou, na já polemizada tradução adotada pelo título do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano e presente na edição brasileira do Seminário 19, “aprisiona”[9] os corpos, inclusive nas palavras de ordem paradoxalmente subversivas que, por exemplo, desde os anos 1960, povoam os muros e os corpos. Assim, um analista – particularmente antes de poder aceder a essa posição, antes de sua passagem de analisante a analista, antes de poder verificar como o S1, ou seja, o significante mestre, ordenador, pode ser menos besta – era, tanto quanto seu paciente (e por ter sido paciente), “moldado”[10] pelo discurso do mestre, ou seja, pelo inconsciente. Mas também quando um analista se deixa tocar pela transferência, quando ele se dispõe a analisar a “moldagem” que o discurso do mestre imprime em cada um de seus analisantes, há alguma irmandade sua com relação ao paciente, na medida em que, assim, um analista se deixa passar por um dos objetos da vida amorosa inconsciente de quem ele atende.
No entanto, a indicação lacaniana dessa irmandade entre analista e paciente é antecedida, no próprio Seminário 19, por uma questão que vai também dissolvê-la, e de forma, a meu ver, contundente e radical: “De quem somos irmãos em todo discurso diferente do discurso analítico?”[11] Com essa pergunta, verificamos que a irmandade só é mesmo possível fora do discurso analítico. Tal excepcionalidade do discurso analítico, sua diferença com relação aos outros discursos, se dá, a meu ver, porque apenas ele sustenta e demonstra esse dizer que “a relação sexual não existe”. Àqueles cujos corpos o discurso analítico impacta (e, aqui, uso um verbo diferente do “pegar”, attraper), esse discurso promove a extração das mais variadas e singulares consequências desse dizer. Em outros termos, a inexistência da relação sexual implica a impossibilidade de sermos bro, “mano”, “maninha”, “miga” e tudo mais que – mesmo se valendo do justo, do certo, do próximo, do livre – pode acabar como: …ou pior.
Essa excepcionalidade do discurso analítico não confere, entretanto, aos analistas, uma posição propriamente privilegiada, embora os marque, um a um, de modo ímpar. Por isso, em 1973, no ano seguinte à última lição do Seminário 19, Lacan[12] afirma que o analista é o “rebotalho (rebut) da dita (humanidade)”, ou seja, daquela que tanto proclama o todo(a)s irmãos-irmãs, quanto vê o racismo se expandir com esse mesmo proferimento. Segundo Lacan[13], um “analista deve trazer” esta “marca” – ser “rebotalho” da humanidade, isto é (e volto a evocar o racismo), ser um segregado… do discurso do mestre que, como sabemos, na experiência analítica, apresenta-se como o próprio inconsciente. Em outros termos, o analista, por trazer esta marca, faz valer, como semblante, no agenciamento do discurso analítico, o objeto a, essa causa que, no discurso do mestre, aparece no lugar do produto e da perda, ou seja, da própria segregação.
Considero que Lacan também nos permite estabelecer uma diferença entre o analista e o que acontece a outros segregados da dita humanidade e, devido a essa diferenciação, tampouco a marca “rebotalho” dará lugar a qualquer irmandade, a qualquer identificação, entre o analista e os outros excluídos da própria humanidade. Afinal, enquanto esses excluídos assim o são, à sua revelia, a seu insu, por uma moldagem, uma espécie de manipulação realizada pelo discurso do mestre em seus corpos, o analista é aquele que, para Lacan[14], “sabe ser um rebotalho”, e eu considero que, esse saber, ele extrai única e exclusivamente do modo como a experiência analítica e sua passagem de analisante à analista lhe permitem sustentar a inexistência da relação sexual, a imparidade que marca os corpos de cada falasser.
* Texto escrito a partir de um convite que me foi feito por Luiz Fernando Carrijo da Cunha, por ocasião da abertura da preparação do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, no dia 9 de março de 2024, e posteriormente formalizado por Gustavo Menezes. A esses dois colegas, meu agradecimento pelo interesse nesta contribuição.
[1] Lacan, J. (1971-1972). O seminário. Livro 19: …ou pior. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 237.
[2] Lacan, J. (1971-1972). Le séminaire. Livre XIX: …ou pire. Texte établi par Jacques-Alain Miller. Paris: Seuil, 2011, p. 236.
[3] Lacan, J. (1959-1960). Le séminaire. Livre VII: L’éthique de la psychanalyse. Texte établi par Jacques-Alain Miller. Paris: Seuil, 1986, p. 290.
[4] Lacan, J. (1971-1972/2011). Op. cit., p. 11.
[5] Idem.
[6] Idem, p. 12.
[7] Idem.
[8] Idem, p. 235.
[9] Na discussão que se seguiu às apresentações do dia 9 de março de 2024, referentes à abertura da preparação do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, Jésus Santiago questionou a tradução de attrapés por “aprisionados” e essa problematização ecoou em algumas réplicas. Por sua vez, no número 2 de Coda, boletim eletrônico relacionado a esse Encontro, Marcus André Vieira, embora concordando que não se trata mesmo da melhor tradução, convida-nos a considerar o que ele chamou de “intradução lacaniana” que, a meu ver, apesar de ser um recurso diplomático e que tem seu lugar nos estudos sobre tradução, não resolve exatamente a questão: https://encontrobrasileiroebp2024.com.br/index.php/boletim/boletim-coda-02/
[10] Retiro, também do Seminário 19, essa referência a ser “moldado” pelo discurso do mestre: para “o discurso do mestre, vocês são, como corpos, moldados (pétris)” (Lacan, 1971-1972/2011, p. 235). Assinalo que, na edição brasileira desse Seminário, o termo pétris foi erroneamente traduzido por “petrificados” (Lacan, 1971-1972/2012, p. 220). Não se trata de modo algum de uma petrificação, mas de uma espécie de moldagem, de manipulação. Rodrigo Lyra Carvalho, em um recente podcast referente ao XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, é sensível a essa diferença, mas sua tradução (que ele próprio considera discutível) de pétris por “sovados” me pareceu demasiadamente literal; também sua referência aos afetos, conforme ele também alude, mereceria um maior aprofundamento. Esse podcast encontra-se acessível em:
[11] Lacan, J. (1971-1972/2011). Op. cit., p. 235.
[12] Lacan, J. (1973). “Note italienne”. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 308.
[13] Idem.
[14] Idem, p. 313.