skip to Main Content

A cicatriz da evaporação do pai e a segregação

Elisa Alvarenga (AME da EBP/AMP)

Adriana Varejão
Pele tatuada à moda de azulejaria, 1995.

A “Nota sobre o pai”[1] de Jacques Lacan foi um comentário realizado por Lacan sobre a apresentação de Michel de Certeau – jesuíta, filósofo e historiador das religiões que participou da criação da Escola Freudiana de Paris – sobre “O que Freud fez da história”, comentando o texto de Freud sobre “Uma neurose demoníaca no século XVII”[2].

Freud estuda o caso do pintor Christoph Haizmann, que tinha dificuldades de sustentar-se e que afirmava ter vendido a alma ao demônio em troca de dinheiro. O pai havia adoecido e morrido. O sujeito aproxima-se de uma comunidade de padres, pelos quais é exorcizado. Ele lhes apresenta um documento que seria o pacto assinado com o diabo, conseguindo guarida junto a essa comunidade religiosa. O ódio reprimido ao pai se traduz na depreciação do pai, transformado em diabo afeminado nos desenhos do pintor. Para Freud, ao retroceder diante de uma posição feminina frente ao pai, ele usaria esse artifício para castrar o pai, denegando sua própria castração. A feminização do diabo revelaria também uma fixação à mãe todo-poderosa, defendendo-o da castração materna. Embora fosse um homem acometido por convulsões e alucinações visuais, numa suposta possessão demoníaca, Freud o considera um caso de neurose em busca da proteção paterna, que conseguiu junto à Congregação dos Irmãos da Misericórdia.

Em sua nota, Lacan diz que a possessão no século XVII deve ser compreendida em certo contexto relativo ao pai, mas a questão que Michel de Certeau coloca – o que acontece quando não há mais pai a quem se votar?  – é de saber onde estamos em relação ao pai. É aí que Lacan enuncia a célebre frase: “Parece-me que, em nossa época, o vestígio, a cicatriz da evaporação do pai é o que poderíamos situar sob a rubrica e o título geral de segregação”[3].

Ao substituir o Nome do Pai pelo S1, significante mestre, Lacan aponta que o efeito de interdição ou de castração não é exercido pelo pai, mas pela linguagem. Desde 1938, nos “Complexos familiares”[4], ele anunciava o declínio da função paterna e, no final do Seminário 10, ao pluralizar o Nome do Pai, antecipa que ele vai se tornar um predicado, uma função de amarração, enfim, um sintoma. A amarração dos três registros, borromeana ou não, é uma radical redução do sentido edipiano e uma maneira de anunciar que o sintoma pode cifrar o gozo, em vez de nos enviar uma mensagem.

Como seriam então produzidos os efeitos de segregação, senão pela linguagem, ou pelas marcas de gozo que nos foram feitas pelo banho do corpo em lalíngua? Sobre essa marca primeira, aquilo que é mais próprio ao falasser, porém mais desconhecido por ele, se constroem as identificações aos significantes do Outro, assim como a fantasia, relação do sujeito com o objeto do seu gozo. As identificações, por um lado, e as fantasias, por outro, são eminentemente segregativas de modos de gozo diferentes daquele do sujeito. Por isso a análise, ao percorrer o caminho inverso ao da constituição do sujeito, em direção à marca de gozo do sinthoma, permite ao falasser encontrar a alteridade que o habita e consentir com a alteridade do corpo que tem. Se os arranjos inconscientes levam o falasser à demanda de análise, podemos pensar que as marcas do inconsciente real, ao endereçar-se a um analista, podem fazer existir o inconsciente transferencial para tratar o real do gozo.

Freud, em “As pulsões e seus destinos”, considera o amor e o ódio como destinos da pulsão, que reproduzem a polaridade prazer-desprazer. “O amor advém da capacidade do eu de satisfazer de modo autoerótico uma parte de suas moções pulsionais”[5]. Originalmente narcísico, passa para os objetos incorporados, expressando os esforços em direção a esses objetos fontes de prazer e posteriormente à atividade das pulsões sexuais. O ódio, em relação com um objeto, é mais antigo que o amor: ele brota do repúdio primordial do eu narcísico perante o mundo externo. Como exteriorização da relação de desprazer provocada pelos objetos, ele permanece em relação com as pulsões de autoconservação, que junto às pulsões sexuais, reproduziriam a oposição entre o ódio e o amor na primeira teoria das pulsões.

Assim, a segregação primeira e fundamental, para cada um, é da substância gozante que o habita. A matriz segregativa da identificação é antes de tudo contra si mesmo, na medida em que é um modo de recusa do objeto ao qual se está identificado e que é Um mesmo. O que se segrega é o gozo encapsulado na identificação, alimento privilegiado do ódio. Com a diluição das identificações, a satisfação pode separar-se do ódio e é possível reconhecer a alteridade radical do Outro: o gozo do Outro não é o gozo do Um.

Como diz Christiane Alberti, a experiência de uma análise conduz a distanciar-se das identificações de massas, sempre segregativas, para considerar o múltiplo das escolhas do desejo e do gozo. A resposta da psicanálise é sempre anti-segregativa, pois leva o sujeito a tomar distância das identificações que empurram os indivíduos a situar-se em um grupo contra outro. A psicanálise nos conduz a apostar em um coletivo que dê lugar a esta pluralidade do Um que inclui o múltiplo, um coletivo fundado sobre a solidão de cada um. Através da transferência, o tratamento traz uma resposta para cada sujeito, em sua diferença absoluta, diante dos impasses que encontra no laço social[6].


[1] Lacan, J. “Nota sobre o pai”. In: Opção Lacaniana, n. 71. São Paulo: Eolia, nov. 2015, pp. 7-8.

[2] Freud, S. “Uma neurose demoníaca do século XVII”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 87-120.

[3] Lacan, J. “Nota sobre o pai”. Op. cit., p. 7.

[4] Lacan, J. “Os Complexos familiares na formação do indivíduo”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp.29-90.

[5] Freud, S. As pulsões e seus destinos. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 61.

[6] Alberti, C. El lazo entre los que hablan, Conferencia en el Taller Clínico de Cochabamba. Texto de Orientación hacia las 31 Jornadas Anuales de la EOL.

Back To Top