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Linguagem e incidências do real no corpo

Carla Fernandes (EBP/AMP)

Gilvan Samico
A Árvore da vida e o infinito azul, 2006

O tema do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano abre um campo de investigação sobre as noções de corpo e discurso no ensino de Lacan. Partindo da ideia da linguagem enquanto estrutura[1], uma interrogação permite trilhar uma via: qual a relação entre linguagem e corpo? A noção de sintoma, que atravessa a experiência de uma análise e a própria psicanálise desde seus fundamentos, permite bordejar, não sem um esforço de poesia, a incidência do real e seus efeitos.

Lacan, na Conferência de Genebra sobre o sintoma, indica que a linguagem é um cancro que “implica, desde o início, em uma espécie de sensibilidade”[2]. A linguagem introduz a função da fala, parasita que vem habitar um corpo[3], aparelhando gozo e significante. Se por um lado, isso é o que produz a experiência humana e permite a entrada no discurso, fazer laço, por outro, repercute em embaraços com o corpo. A ancoragem do ser falante na linguagem subverte o programa biológico da sexualidade, que visa a reprodução, colocando em circuito o campo pulsional. Isso põe em causa uma falha constitutiva no falasser [parlêtre], correlata à inexistência da relação sexual[4].

O corpo é constituído no equívoco do encontro com significantes que marcam e ordenam o modo de gozo, junto com a imagem pela qual o homem é capturado[5]. Aqui o imaginário adquire consistência, é o que permite em torno do furo fazer um mundo. É a partir disso que se constroem ficções, a capacidade de elucubrar um saber em torno do que é produzido como marca, lalíngua [lalangue]. Essas ficções, produtos da maquinaria de sentido, regem o ser falante. Trata-se de algo que se opera no fundamento da falha estrutural do Outro do significante.

Desde o princípio da psicanálise, a experiência freudiana nos ensina que o corpo é afetado pela linguagem. O inconsciente é uma engrenagem que incide no corpo, produzindo sintomas. Essa foi a lição das pacientes histéricas de Freud. Durante as sessões de análise da paciente Elisabeth von R., Freud constata que as “suas pernas doloridas começaram a participar da conversa”[6], ou seja, aparece aí a dimensão da sensibilidade do corpo à palavra, sob transferência. Ele ficava surpreso ao se dar conta de que, por meio de uma pergunta à paciente, surgia o sintoma do qual se queixava. Sobre isso, afirma: “a dor assim despertada persistia enquanto a paciente estivesse sob influência da lembrança; alcançava seu clímax quando ela estava no ato de me contar a parte essencial e decisiva do que tinha que comunicar, e com a última palavra desse relato, desaparecia”[7].

Na análise desta paciente, Freud já evidencia o paradoxo de uma espécie de satisfação na dor e um doloroso sentimento de desamparo que se liga à impotência de “dar um único passo à frente”[8]. Disso depreende-se que a palavra tem o poder, em termos da relação com o discurso, de fazer um sintoma entrar na conversa. O que capturava o corpo dessa paciente, impossibilitada de seguir em frente, se endereçava ao analista. Entretanto, na tentativa de produção de uma ficção para enunciar a verdade sobre o sintoma, decifrando um sentido, Freud[9] foi se deparando com os impasses no tratamento, chegando à perspectiva de que há uma vertente do sintoma que persiste, em termos de satisfação pulsional, que é da ordem de um incurável.

Lacan promove uma torção, propondo no horizonte da psicanálise algo distinto da prevalência simbólica na histeria: “o real como ideia limite, a ideia do que não tem sentido”[10]. Nessa perspectiva, o sintoma é o parceiro sexual e esse parceiro, é o próprio modo de gozo do falasser. Segundo Miller: “é evidente que o parceiro fundamental do sujeito não é o Outro como pessoa, nem como lugar da verdade. Ao contrário, o parceiro do sujeito, o que a psicanálise sempre percebeu, é algo dele próprio: a sua imagem (…) seu objeto a, seu mais-de-gozar e fundamentalmente o sintoma”[11].

Como favorecer, no horizonte de uma análise, que o real do sintoma seja tocado, indo além do adormecimento do sentido, da estrutura de ficção que o analisante construiu em torno do furo? Trata-se de uma aposta sustentada por Lacan, na medida em que propõe o discurso analítico apoiado na lógica, ciência do real: “lembro que é pela lógica que esse discurso toca o real, ao reencontrá-lo como impossível, donde é esse discurso que a eleva a sua potência extrema: ciência, disse eu, do real”[12]. Lacan nos ensina que é preciso arriscar por essa via, extrair as consequências de uma abordagem que visa o real.

Em uma Conferência proferida em Salvador, Pierre Skriabine pôde transmitir a incidência, na análise com Lacan, da presença do analista, em corpo, e o ato perturbando a defesa com um forçamento em direção ao real:

Lacan não tinha medo do ato. E ele batia com força. Ele operava em um mundo tórico. Ele conduzia o sujeito analisando neste espaço a-esférico (…) no avesso do ponto onde acreditávamos estar, e onde era necessário aprender a se orientar de forma diferente (…). E ele lhes colava significantes, os de vocês. Ele os colocava sem defesa face ao desejo de vocês, sem se preocupar com o resto. Lacan operava sobre a estrutura, tão feroz quanto gentil.[13]


[1] Lacan, J. “O aturdito”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

[2] Lacan, J. “Conferência de Genebra sobre o sintoma”. In: Opção Lacaniana. São Paulo: Eolia, n. 23, dezembro 1998, p. 2.

[3] Lacan, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

[4] Skriabine, P. “A Revolução Lacaniana: a estrutura topológica da experiência humana”. In: Agente Digital. Revista de Psicanálise, nova série, n. 8, ano 2, abril de 2003.

[5] Idem.

[6] Freud, S. Estudos sobre a Histeria (1893-1895). In:___. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 173.

[7] Idem.

[8] Idem, p. 177.

[9] Freud, S. Inibição, Sintoma e Angústia (1926). In:___. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[10] Laurent, E. Falar com seu sintoma, falar com o corpo. VI ENAPOL. Disponível em: Falar com seu sintoma, falar com seu corpo – VI ENAPOL.

[11] Miller, J-A. “A teoria do parceiro”. In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. EBP: Contra Capa Livraria, 2000, p. 156.

[12] Lacan, J. “O aturdito”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

[13] Skriabine, P. “A Revolução Lacaniana: a estrutura topológica da experiência humana”. Op. cit., p. 16.

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