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Há Um: corpo – memória

Renato C. Vieira (EBP/AMP)

Ed Ribeiro
Oxalá

Pretendo abordar a dimensão de um corpo aprisionado pelos discursos através da contingência de um encontro e seus efeitos no campo do Outro. Acontecimento único, traumático e assemântico que produz efeitos de um gozo persistente. Um dizer silencioso da pulsão que deixa marcas indeléveis.

Uma experiência analítica vai do sintoma à fantasia e seu retorno – retorno que pressupõe o conceito de Sinthoma. O Sinthoma, chave do último ensino de Lacan, “designa o que há de comum entre sintoma e fantasia, a saber, o modo singular de um sujeito gozar”[1].

A orientação para o singular ultrapassa o trabalho de memória. Este trabalho pertence a um outro registro, àquele que visa a balizar as repetições e a interpretação analítica.

Ana vem à análise com um diagnóstico psiquiátrico, uma defesa contra o real. Defesa que emergiu em seu primeiro encontro sexual, uma besteira. Seu parceiro toca uma parte de seu corpo de forma memorável, prazerosa e repulsiva. A partir desse instante, uma série de sintomas brota em seu corpo e a leva a uma internação psiquiátrica, onde um diagnóstico cai como uma luva para alimentar suas fantasias, que passam a ser interpretadas como alucinações.

Meu médico é aquele que aceita, de um modo geral, que eu o instrua sobre o que somente eu estou fundamentado para lhe dizer, ou seja, o que meu corpo me anuncia por meio dos sintomas e cujo sentido não me é claro. Meu médico é aquele que aceita que eu veja nele um exegeta antes de vê-lo como reparador.[2]

A análise visa ao X desse acontecimento memorável. Acontecimento que lhe faz sofrer e, paradoxalmente, serve como modo de gozar do sintoma. Isolar o X da besteira é uma estratégia adotada para que Ana possa construir um saber-fazer com o seu trauma inaugural.

Lacan indaga de onde parte o que é capaz de responder pelo gozo do corpo do Outro. Ele afirma que não é do amor e sim do amuro, isto é, daquilo que aparece em signos bizarros no corpo.

São esses caracteres sexuais que vêm do além, desse local que temos acreditado podermos ocular no microscópio sob a forma de gérmen – a respeito do qual … não se pode dizer que seja a vida, pois aquilo também porta a morte, a morte do corpo, por repeti-lo. É de lá que vem o mais, o em-corpo, o A inda. É, portanto, falso dizer que há separação do soma e do gérmen, pois, por alojar esse gérmen, o corpo leva seus traços. Há traços no amuro. (…) são traços apenas. O ser do corpo certamente que é sexuado, mas é secundário, como se diz. E como a experiência o demonstra, não são desses traços que depende o gozo do corpo, no que ele simboliza o Outro.[3]

Ler o sintoma leva a perceber o gozo no sofrimento. Ainda não estamos, contudo, na dimensão do gozo do corpo. Até aqui, situamo-nos pela economia de um condensador de gozo, estritamente ornamentado pela castração[4]. Na perspectiva da economia do corpo que se goza, há um real, isto é, “o mistério do corpo falante, o mistério do inconsciente”[5].

Na experiência analítica, algo do sintoma escapa à dimensão semântica e faz ecoar uma repetição que indica um real como marca do encontro faltoso. Algo que, para Ana, ressoa no corpo para, logo em seguida, ser recoberto como defesa do real trauma. Aqui, sintoma e fantasia se alinham visando a ofuscar o mistério do corpo falante. Todavia, a pulsão insiste – há um não-sei irredutível que repercute, apesar das muralhas erigidas pela máquina de diagnosticar.

De acordo com Lacan, a presença do analista se inclui no conceito de inconsciente. Todavia, ele nos adverte que a função do ratear está no centro da repetição analítica. O Encontro é sempre faltoso. Logo, “o que pode, no final das contas, levar o paciente a recorrer ao analista para lhe pedir algo que se chama saúde, quando seu sintoma (…) é feito para lhe trazer certas satisfações”[6].

O analista trata a insatisfação que surge do sintoma, advertido de que tudo o que os pacientes são, mesmo os seus sintomas, dependem de uma satisfação. Eles não se contentam com seu estado de sofrimento, mas, mesmo assim, eles se contentam com esse estado pouco contentador. A questão está nesse se, que está aí contentado[7].

Nós sabemos que as formas de arranjo que existem entre o que funciona bem e o que funciona mal constituem uma série contínua. O que temos diante de nós, em análise, é um sistema onde tudo se arranja, e que atinge seu tipo próprio de satisfação. Se nós nos metemos com isto, é na medida em que pensamos que há outras vias (…). Em todo caso, se nos referimos à pulsão, é na medida em que é no nível da pulsão que o estado de satisfação deve ser retificado.[8]

Para a psicanálise, o sujeito não é aquele que pensa. “O sujeito é, propriamente, aquele que engajamos, não, como dizemos a ele para encantá-lo, a dizer tudo – não se pode dizer tudo – mas a dizer besteiras, isso é tudo. (…) com essas besteiras vamos fazer análise e entramos no novo sujeito que é o do inconsciente”[9].

Com efeito, a substância do corpo se define apenas como isso que se goza. “Eis a propriedade de um corpo vivo, mesmo não sabendo o que é estar vivo – um corpo, isso se goza. Isso só se goza por corporizá-lo de maneira significante”[10].

Desse modo, os efeitos que um significante primevo produz no corpo capturam e perturbam o ser falante. Por sua vez, os efeitos memoráveis desse acontecimento repercutem no campo do Outro.

Aprisionados pelos discursos, somos aquilo que achamos que dizemos o que queremos.

Todavia, uma análise pode nos levar aos restos sintomáticos e a cingir um gozo não variável. Na psicanálise, um corpo vivo é condição do gozo opaco ao sentido. Definitivamente, Lacan nos ensina que o gozo da fala (do sentido) é distinto do gozo do corpo (substância gozante). Ana, em análise, diz: ouço vozes, mas ninguém me diz nada. A seguir ela se indaga: será que essas vozes são minhas?


[1] Miller, J.-A. Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 70.

[2] Canguilhem, G. Escritos sobre a medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 45.

[3] Lacan, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 13.

[4] Miller, J-A. Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan. Op. cit., pp. 70-71.

[5] Lacan, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cit., p. 178.

[6] Lacan, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, pp. 123-131.

[7] Idem, p. 158.

[8] Idem.

[9] Lacan, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cit., p. 33.

[10] Idem, p. 35.

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