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Mulheres, obedeçam!

Oscar Reymundo (EBP/AMP)

Ninguém é mais escravo do que aquele que acredita ser livre.
(Johann Goethe)

O processo de empoderamento feminista tem ampliado o acesso de mulheres à cidadania, principalmente, através de medidas que visam à promoção de equidade entre gêneros. A despeito disso, a violência contra a mulher vem apresentando considerável recrudescimento, evidenciando a presença resistente de um ódio misógino.[1]

Arthur Bispo do Rosário
Título atribuído: “Canecas”
Coleção Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

Esse aumento da violência contra as mulheres parece, então, guardar uma relação com a força que, na nossa cultura, vem adquirindo o discurso do empoderamento feminista e seus efeitos de novas conquistas de direitos. Trata-se da potência de um discurso que permite a muitas mulheres, cada uma do seu jeito, assumir, fora e dentro de casa, posicionamentos e responsabilidades em espaços tradicionalmente considerados e reservados para os homens, sem, por isso, necessitar cobrir seus novos corpos com roupas masculinas, ou roupas que ocultem um corpo feminino.

Foi em uma experiência de supervisão de psicólogas de uma instituição que acolhe mulheres vítimas de violência, quando tive a oportunidade de perceber o uso, como imperativo de época, que se pode fazer do significante “empoderamento”, e os efeitos violentos, sacrificiais, que o Discurso do Mestre, erguendo o significante “empoderamento” como S1, pode produzir no interior de parcerias amorosas. De fato, uma espécie de furor curandis de um eu débil, baseado na ilusão de um eu consistente, dono de si, e sem conflitos, fazia do empoderamento uma lei férrea que impregnava as intervenções das profissionais, apagando o sujeito do inconsciente. Assim, algumas mulheres eram tomadas por essas intervenções, que não estavam isentas de um dizer culpabilizante por trás dos ditos sobre os direitos femininos, nem sequer respeitados pelas próprias vítimas. Muitas destas mulheres ficaram expostas às respostas violentas dos seus parceiros amorosos – acima de tudo, as mulheres que, depois de retirada a denúncia que fizeram contra seus parceiros, voltaram para casa “empoderadas”, brandindo reivindicações e direitos feministas, e reencontravam o ódio e a violência de um homem que se acha proprietário do corpo e da vida da “sua” mulher.

Sabemos, a partir das elaborações de Lacan, que existe uma correspondência entre discurso e laço social, uma vez que o discurso é pensado como a estrutura do laço. Interrogar, então, o corpo aprisionado pelo discurso é levar em consideração a diferença do corpo do ser falante com o seu organismo, uma vez que, no ser falante, o organismo está atravessado e perturbado pela linguagem. Não nascemos com um corpo, mas com um organismo. O corpo, feito de palavras, o habitamos… ou não. O corpo do ser falante é um corpo falado que fala e é essa a sua singularidade e o seu mistério. Marie-Hélène Brousse, na sua conferência “Hacia el Foro de Roma”, nos diz que “O ser falante é, em primeiro lugar, um corpo” [2]. Na mesma linha, Araceli Fuentes nos diz que “O corpo é o lugar do Outro na medida em que é no corpo onde se escreve a história do sujeito”[3].

Voltando, então, àquela experiência de supervisão, foi necessário distinguir palavra de comunicação para introduzir o sintoma constituído por uma estrutura significante que o determina. Assim, foi possível uma pergunta surgir orientando o trabalho: o que leva uma mulher, vítima de violência, a ficar aprisionada no laço com um homem violento? Embora a resposta para essa pergunta só possa ser formulada por cada mulher, na sua singularidade, esse aprisionamento se manifesta na repetição de um circuito de maus-tratos e violência, de denúncias, de cancelamento das denúncias, da volta para casa, de novos maus-tratos, de novos episódios de violência… Algo inalcançável pelo simbólico e, por isso, ilimitado, que divide a mulher, opera nessa repetição, deixando-a fragilizada perante situações de violência. Algo que, na psicanálise, chamamos de gozo opaco à ordem simbólica, que habita o corpo e resiste ao sentido. Um resto que precisa de uma orientação Outra, não sacrificial. Uma orientação que, em lugar de deixar os corpos presos no circuito de maus-tratos, possibilitasse espaços onde fazer falar e ouvir as histórias escritas nos corpos dessas mulheres.

Uma história das sociedades humanas poderia ser contada pelo viés das tentativas que cada cultura fez, e continua fazendo, para controlar o incontrolável desses excessos que toma os corpos dos sujeitos na posição feminina. O discurso religioso, manifestação do Discurso do Mestre, foi e continua sendo uma das formas de controle desse gozo através da petrificação dos corpos[4]. Assim, fogueiras, manicômios, cárceres, hospitais, tratamentos adaptativos, cemitérios se tornam possíveis destinos dos corpos de quem atravessa os limites do mundo daquele que encarna o poder patriarcal, que não se limita aos homens. Em 2023, a Câmara de Deputados do Brasil aprovou a Lei de Igualdade Salarial. Dos 36 parlamentares que votaram contra a lei, 10 foram deputadas de partidos políticos cujos líderes sustentaram, com suas falas e ações, a posição de exceção do Pai da horda primeva, que ostenta a propriedade sexual dos corpos de todas as mulheres. Dez deputadas que se somaram a mais uma tentativa de produzir corpos obedientes, dirigida à mulher como encarnação do enigma do feminino.


[1] Caldas, H.; Dupin, G. “O amódio ao feminino e a violência nas parcerias”. In: Danzioto, L. et al. Violência de gênero e ódio ao feminino. Curitiba: Editora CRV, 2021, p. 127.
[2] Brousse, M.-H. “El extraño que yerra”. In: Blog Zadig España. 10 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://zadigespana.wordpress.com/2018/02/10/el-extrano-que-yerra/. Acessado em 17/05/2024.
[3] Fuentes, A. El misterio del cuerpo hablante. Barcelona: Gedisa, 2016, p. 24.
[4] Lacan, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 220.
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