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Coda

Marcia Stival (EBP/AMP)

[Símbolo do Coda]

 

O estabelecimento de cada Seminário de Lacan, por Jacques-Alain Miller, vai dimensionando elementos de um ensino, trazendo discrepâncias, evidenciando retomadas e novas perspectivas. Trata-se de um percurso em plena transformação, com direito às correções do próprio autor, favorecidas pela experiência.

Entrar efetivamente num seminário não requisita, necessariamente, o interesse pela sua estrutura. É possível se deter num capítulo, num parágrafo ou até mesmo numa frase, para acusar o recebimento de uma transmissão.

Por vezes, trata-se apenas de uma palavra, como a que foi pinçada pela comissão do boletim do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.  A escrita do significante coda (pronuncia-se côda), que Miller destaca no final do Seminário XIX, chamou a atenção de vários psicanalistas.

Coda, palavra de origem italiana, significa “cauda”. Como símbolo musical, indica onde a obra finalizará.

O ponto que chama atenção é que esta marcação é colocada quando, na execução da obra, alguma(s) parte(s) precisarão ser repetidas, assim como outra(s) deverão ser puladas. Daí considerar que o Coda venha acompanhado de outras escritas musicais, como no exemplo abaixo.

A leitura da partitura se inicia com as retas e flechas em vermelho que vão até as expressões: D.C. al Coda, que quer dizer Do Começo até encontrar a expressão al Coda. O intérprete volta ao começo da partitura, o que é evidenciado pela indicação da flecha inclinada, em azul. Ele deverá iniciar até encontrar a expressão al Coda. Quando chegar nesta expressão, o intérprete pula uma determinada parte (que serão os compassos que não tem indicação de flecha reta em azul) e, seguindo a flecha inclinada em azul, encontrará o símbolo do Coda. Desse símbolo, seguirá para a finalização da partitura[1].

Ao resgatar esses elementos musicais, pode-se conceber que eles estão dispostos para indicar a inexistência de uma linearidade na obra e a participação de elementos que norteiam a execução dela.

Essas extrações do campo musical podem remeter a algumas características envolvidas na composição do Seminário 19. Ou seja, é possível verificar a falta de linearidade ao longo deste seminário, à medida que conceitos são destacados e voltam a aparecer em capítulos diferentes, em busca do delineamento de uma orientação. É um seminário de transição, do segundo para o último ensino de Lacan, no qual ideias aparecem, desaparecem e preparam para as fórmulas da sexuação[2].

Sobre a estrutura de um seminário, Jacques-Alain Miller afirma: “Tendo observado que, em média, um seminário se deixa facilmente dividir em três “partes” — pontuação essencial —, tomei a decisão, desde muito cedo, com o acordo de Lacan, de indicá-las. É o ritmo que às vezes observo e que constituo: três grandes escansões em média, mais uma introdução e uma conclusão de que, logo que é alcançada, demanda uma quarta parte — mas é bem raro”[3].

Seguindo a proposta de três escansões, no Seminário 19 há a quarta parte que é nomeada “Coda”. O que pode indicar este ir e vir que culmina no Coda?

Ao introduzir o Seminário 19, Lacan enfatiza a presença do lugar vazio, salientando que esta “é a única maneira de agarrar algo com a linguagem”[4]. O que ocupa esse lugar vazio é o verbo dizer. No entanto, “não é dizer, mas um dizer”[5].

Deste um dizer advém a proposição “não existe relação sexual”[6], anunciando que pela via do sexo, nenhuma proporção entre os seres falantes é definida. Lacan destaca que “é em torno desse existe que deve girar nosso avanço”[7].

Para tanto, ao resgatar as letras e lugares do discurso do analista, Lacan enfatiza que o sujeito corresponde à fileira de pensamentos. Assim, acrescenta sobre o sujeito hipotético: “vou chamá-lo de a cauda [traîne], a cauda dessa fileira de pensamentos, desse algo de real que produz o efeito de cometa que chamei de fileira de pensamentos, e que talvez seja efetivamente o falo”[8].

Há um anúncio: “uma vez que o ser depende do discurso, o ser depende do Um que, nesse sentido, é anterior ao ser”[9]. Lacan explora uma nova lógica, que só se torna apreensível ao se consider os seus pequenos mistérios[10].

Para extrair algo dessa novidade, proponho um salto da referência à cauda, para aterrissar no Coda.

Na chegada a essa parte final, Lacan sublinha que aquilo que formulou até então “é o eixo que tomamos na ordem que se funda a partir do Um”[11]. Desloca-se da via traçada pelo Nome-do-Pai, para destacar a via do Um e “abraçar esse impossível no qual se reúne o que é para nós, no discurso analítico, fundamentável como real”[12].


[1] Nedialkov, B. I. e Pereira, F. S. Harmonia Funcional:  progressão de acordes:  teoria e prática. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019.
[2] Brousse, M.-H. Apertura Seminario XIX …o peor de Jacques Lacan, Seminario del Campo Freudiano en Alicante, outubro 2020. Disponível em: https://www.scf-alicante.es/index.php/videoconferencias/416-apertura-seminario-xix-o-peor-marie-helene-brousse
[3] Miller, J.-A. “Entrevista sobre ‘O Seminário’ com François Ansermet”. In: Opção Lacaniana online nova série, ano 2, n 6, novembro 2011, p. 10. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_6/entrevista_sobre_o_seminario.pdf
[4] Lacan, J. (1971-1972) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p.12.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] Idem, p. 21.
[8] Idem, p. 112.
[9] Miller, J.-A. Curso da Orientação lacaniana. O Um sozinho. Aula de 16/03/2011. Inédito.
[10] Lacan, J. (1971-1972) Op. cit., p. 113.
[11] Idem, p. 205.
[12] Idem, p. 213.
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