Carla Fernandes (EBP/AMP) O tema do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano abre um campo…
Os corpos aprisionados pelos discursos… e seus restos
Maria Josefina Sota Fuentes (AME da EBP/AMP)
Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer às instâncias envolvidas por este convite, que me colocaram diante do desafio de comentar o tema do 25º Encontro Brasileiro, cujo título foi extraído do último capítulo do Seminário 19 de Lacan.
Sendo esta uma atividade preparatória[1], pensei em trazer alguns pontos que me chamaram a atenção neste capítulo que é bastante complexo, pois ele se dá no momento que Lacan muda de paradigmas, mas sem anunciar que edifício teórico se sustentará em novas bases. Tais mudanças acompanham, inclusive, as novas formas civilizatórias com as quais o gozo é tratado pela linguagem, isto é, a maneira como os corpos são dominados pelos discursos.
- A pluralização do S1s no discurso do mestre contemporâneo
Tal como comenta Miller nas Intuições milanesas, mal Lacan havia isolado no Seminário 17 o S1 do discurso do inconsciente como o significante mestre da autoridade patriarcal, central na identificação e no agrupamento dos indivíduos numa sociedade organizada a partir da interdição do gozo, ele o questiona para pulverizá-lo, pluralizando-o. É o enxame de S1s que aparecerá no Seminário 20, justamente quando não vivemos mais sob o reinado do pai que fundava o conjunto, limitando o gozo e introduzindo uma falta, segundo a lógica da sexuação masculina. Quando “O pai já não assombra mais a família”[2], a sociedade passa a ser governada pelo que Miller chamou de “máquina do não-todo”[3], cujo paradigma é o gozo feminino. Sem centro, nem barreiras que sirvam de anteparo ao desvario do gozo ilimitado, o não-todo arrasta o sujeito, ausente de si mesmo, ali onde ele não se mais se encontra. O enxame de S1s pluralizado chega na forma de significantes fragmentários, como no bombardeamento frenético de informações aos sujeitos sem referências, desarticulados e dispersos, que criam estratégias para se sustentarem num mundo regido pelo empuxo ao gozo.
Com o declínio da organização coletiva, Miller destaca, entre os sintomas da época, os apelos desesperados à ordem e à volta do reinado do significante mestre, bem como as bolhas de certeza que se consolidam nas comunidades ensimesmadas, as micro-totalidades dos nichos que restituem um certo domínio.
Por isso, foi preciso a Lacan introduzir uma variante do discurso do mestre, o discurso do capitalismo, que promove o sujeito, não mais dividido entre os significantes que o representam, simbolicamente, mas à mercê dos gadgets que o consomem.
Assim, Lacan termina o Seminário 19 dizendo: “Em tudo isto, não lhes falei em absoluto do pai, porque considerei que isso já lhes tinha sido suficientemente dito e explicado, ao lhes mostrar que é em torno daquele que unia, daquele que diz não […] que deve basear-se tudo o que há de universal”[4]. E então anuncia o pior: um futuro sombrio na civilização com o incremento do racismo e dos processos segregativos levados às últimas consequências.
- O retorno ao fundamento do corpo
Um segundo ponto fundamental deste capítulo é o tema do corpo, bastante complexo no ensino e particularmente neste Seminário, onde Lacan elabora o gozo do corpo do Há Um. Trata-se de um canteiro de obras para as passagens de Lacan pela sexualidade feminina, das quais ele extrairá o gozo não-todo fora do discurso, que acontece num corpo Outro distinto do fálico, infinito e ilimitado, para depois localizá-lo no coração do sinthoma como um acontecimento de corpo inerente ao falasser[5].
Ainda no último capítulo do Seminário 19, Lacan volta a explorar as relações do corpo com o discurso, com aquilo que “mantém todos vocês juntos” [6], ele diz, o “engate social”[7], que “se passa no nível de um certo número de capturas que não se dão por acaso”[8]. Não se trata forçosamente de um corpo, ele esclarece, mas do corpo como suporte do discurso e que permite a circulação do gozo no laço social.
Lacan já o havia desenvolvido com o paradigma dos quatro discursos, a relação primitiva e circular que pode se dar entre gozo e significante, sendo o laço social o lugar onde se recupera o gozo mortificado pela linguagem por meio do mais-de-gozar, alojado no tecido da civilização. “É o gozo corpo a corpo”[9], diz Lacan, o gozo que circula dando substância ao traço. “É isso que faz com que possa haver nessa história vários corpos aprisionados, e até série de corpos”[10].
Mas não seria exatamente uma novidade naquele momento dizer que os corpos são marcados ou até mesmo “aprisionados” pelos discursos – deixando de lado as polêmicas em torno da tradução brasileira do termo atrapper. Lacan assinala nessa aula que essa novidade foi Freud quem a trouxe com a sobredeterminação do inconsciente. Contudo, foi com Lacan que aprendemos que não se nasce com um corpo; é preciso fabricá-lo com a linguagem.
Inicialmente, ele demonstrou que o inconsciente como discurso do Outro, estruturado como uma linguagem, é a coluna vertebral e o tecido com o qual se veste o corpo. Este é fabricado no imaginário do espelho, mas não sem a mediação da palavra do Outro da linguagem, os significantes mestres que fornecem as vias identificatórias que enlaçam o real do caos do corpo fragmentado ao discurso do Outro. Para se ter um corpo é preciso, pois, consentir com a alienação primordial ao Outro da linguagem, encarnada pela primeira e grande arrebatadora de corpos que é a mãe, simbolizando sua ausência no célebre jogo significante do Fort-da. Isto implica a inscrição dessa ausência no real do corpo e o consentimento com um perda, a extração do gozo pela linguagem que se materializa no objeto a. São esses pedaços de corpo, os objetos pulsionais recortados pela linguagem que entram em circulação no laço social, dando consistência às identificações primordiais e ao sentimento de possuirmos um corpo.
Aprendemos que a interdição do gozo pelo Nome e amor ao Pai, no regime masculino, funcionavam classicamente para o neurótico como a armadura corpórea, e vimos a que ponto a sintomatologia histérica – aquela que há tempos se rebela contra a ditadura do discurso do mestre tirando literalmente o corpo fora – mostra a dificuldade de se ter um corpo sem ter que apelar para a Outra mulher, quando justamente a identificação para A mulher não existe no inconsciente.
A inconsistência e fragilidade do corpo – passando pela clínica das psicoses e as dificuldades de se fabricar um corpo quando não conta com o apoio do discurso –, culminam no avesso do estádio do espelho que é, precisamente, o estado de angústia: “De que temos medo?” – pergunta Lacan na Terceira. “Do nosso corpo” [11]. Trata-se da suspeita de que nos reduzimos a um resto caído do discurso, o aborto de um desejo que nos separa do Outro, ditando o luto a ser feito de todos os objetos e identificações que sustentavam o corpo.
Então, por um lado, a precariedade corpórea dá a dimensão da urgência do sujeito em ser tomado e, até mesmo, “aprisionado” pelos discursos, quanto mais os significantes mestres da época se pluralizam e o sujeito, em puro estado de angústia, é a expressão máxima da ausência de referências.
Por outro, acompanhando as mudanças da época, com a posterior elaboração da clínica borromeana e seus inúmeros arranjos possíveis para fabricar-se um corpo, Lacan, ao seguir as pistas de alguém como James Joyce, desabonado do inconsciente, carente do apoio do discurso do Outro, indica possíveis caminhos na construção de um corpo que prescinda do aprisionamento nas insígnias identificatórias do Outro social. Ou seja, a substância corpórea pode ser extraída não do Outro, mas de uma identificação não segregativa ao sinthoma, permitindo uma ancoragem e o desprendimento dos corpos ávidos pelas capturas dos mestres da vez. Para tanto, em vez de segregar, será preciso consentir com o abismo da singularidade da diferença absoluta que habita em cada um, o real de um gozo fora do sentido, louco e enigmático, impossível de ser dito e coletivizado – nem mesmo nas mais bem intencionadas sociedades fraternas onde reinam os melhores sentimentos.
Precisamente, diz Lacan ainda ao final do Seminário 19, o pior se anuncia na formação de uma lógica coletiva baseada na sociedade dos irmãos, da igualdade fraterna dos corpos que rejeita o real da diferença absoluta, onde se enraíza o racismo. Seu fundamento se dá na rejeição àqueles que encarnam um gozo intolerável, na afirmação das bolhas de certeza dos “nós” na guerra mortal contra “eles”. A começar, na grande bolha de certeza masculina que foi a clássica difamação contra as mulheres, segregadas por encarnarem um modo de gozo fora do alcance e que, desde sempre, é preciso dominar.
- O inconsciente é a política, encore
Esta frase, enunciada no Seminário 14 na aula “O Outro é o corpo”, dá o alcance sempre atual e político do discurso analítico, desde que o analista seja capaz de interpretar os significantes mestres que se renovam na civilização, sem ser ele mesmo arrastado pela espiral da época. A meu ver, esse é o esforço de Lacan ao falar sobre o “aprisionamento” dos corpos pelo discurso. Neste capítulo, novamente, é o analista quem está na berlinda.
“O Outro, caso vocês ainda não tenham adivinhado, é o corpo”, diz Lacan, ainda no Seminário 14. “Ele é feito para ser marcado” [12]. Com efeito, se o inconsciente é o discurso do Outro, não há uma separação do campo individual do social e político. O inconsciente é transindividual e o corpo necessariamente social. Mas, além disso, ali Lacan já começa a explorar o que seria a incidência da letra no real do corpo, que carrega as marcas do tecido social da época, tocando a singularidade.
Eric Laurent, analisando A sociedade do sintoma, indica que em 1966-67 tratava-se para Lacan de encontrar outra forma de pensar o inconsciente, não mais a partir do pai, mas como algo a definir e, nesse mesmo contexto em que afirma que o Inconsciente é a política, enuncia poeticamente, surpreendendo seu público americano que esperava ouvir sobre o estruturalismo, que o inconsciente é Baltimore ao amanhecer. Eu cito Laurent: “De saída, Lacan se dirige ao público dizendo que o lugar do inconsciente é aquele onde vivem aqueles a quem ele se dirige. Tu, que me escutas, sabes que estás submerso, estás no próprio lugar do inconsciente. Ele está em ti, tu estás nele; estás submerso no inconsciente”[13].
Como localizar o sujeito do inconsciente? – Pergunta então Lacan. “É necessário situá-lo como um objeto perdido”[14]. Ele está em todos os lugares e disperso, não se prende a nenhum. Ou seja, ele não aparece aqui representado pelo significante mestre articulado à cadeia simbólica que o captura, mas na própria pulsação do tecido da repetição, na cidade que atualiza o não-todo. Ausente de si, o sujeito é arrastado no próprio movimento de êxtase da repetição da “mesmice da marca”[15], celebrando a repetição de um gozo inesquecível. Trata-se do “sujeito do gozo”[16], comandado por aquilo que Lacan lê na placa luminosa de neon, na madrugada adentro olhando a cidade pela janela do quarto do hotel, enquanto preparava sua conferência: “Enjoy Coca-cola”[17].
Seria possível, ao menos para o analista, despertar desse sonho ao “amanhecer em Baltimore”? Lacan reitera ao final do Seminário 19 que “o sujeito continua a sonhar em sua vida”[18], olhando o mundo desde a janela de seu fantasma com a tela do discurso do mestre da vez. Portanto, o despertar impossível do inconsciente não deixa de afetar também o analista, já que ele mesmo também está submerso no inconsciente, no lugar e no tempo em que vive, no inconsciente sempre a definir, jamais plenamente identificável e à serviço dos mestres da vez. Ele não deixa ser “irmão do seu paciente”[19], pois, diz Lacan, “como ele, somos filho do discurso”[20].
Portanto, o analista estará tanto mais à altura de sustentar a psicanálise no mundo, seja aonde for, quanto mais for capaz de dar corpo, com sua presença e seu dizer, não à fratria dos corpos, à Sociedade de Assistência Mútua Contra o Discurso Analítico, mas a um objeto precioso, ausente no mercado: o vazio em causa do desejo, ali onde qualquer relação de domínio queira dele se apossar.
[1] Texto apresentado no dia 14 de agosto de 2024 durante a atividade preparatória, na EBP – Seção São Paulo, para o XXV EBCF.
[2] Lacan, J. (1971-1972) O Seminário, livro 19: … ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 185.
[3] Miller, J.-A. “Intuições milanesas II”. Opção lacaniana online nova série, ano 2, n. 6, nov./2011, p.10.
[4] Lacan, J. (1971-1972) O Seminário, livro 19: … ou pior. Op. cit., p. 227.
[5] Miller, J.-A. “L’un est lettre”, La Cause du Désir: revue de psychanalyse, n. 107, Navarin. 2021, p. 34.
[6] Lacan, J. (1971-1972) O Seminário, livro 19: … ou pior. Op. cit., p. 221.
[7] Idem.
[8] Idem.
[9] Idem, p. 217.
[10] Idem.
[11] Lacan, J. “A terceira”. In: Opção lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Ed. Eólia, n. 62, dez. 2011, p. 29.
[12] Lacan, J. Le Séminaire de Jacques Lacan, Livre XIV: la logique du fantasme. Paris, Éditions du Seuil, 2023, p. 328 (tradução livre).
[13] Laurent, É. A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contra-capa, 2007, pp.93-94,
[14] Lacan, J. “Conferência em Baltimore”. Opção lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Ed. Eólia, n.77, ag./2017, p. 13.
[15] Idem, p. 16.
[16] Idem, p. 19.
[17] Idem, p. 20.
[18] Lacan, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19: … ou pior. Op. cit., p. 226.
[19] Idem.
[20] Idem.