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O deserto é pior

Rodrigo Lyra Carvalho (EBP/AMP)

Adriana Varejão
Panorama da Guanabara, 2012.

Os modos prevalentes de identificação na cultura são um tema primordial para a psicanálise. Seja em função dos desafios inerentes às suas manifestações na clínica, seja pelo que revelam sobre os laços sociais, as tendências da constituição das subjetividades convocam nossa reflexão. Nesse sentido, os movimentos emancipatórios que se apoiam em traços de identidade têm sido, cada vez mais, objeto de nosso debate.

Fui instigado a avançar nessa conversa pelo texto “A marca do analista”, de Sérgio Laia, difundido no Boletim Coda 04, onde ele propõe uma articulação entre os alertas de Lacan a respeito da escalada do racismo e a atuação dos movimentos identitários contemporâneos. Ao destacar que Lacan notava a “surpreendente intensificação do racismo já no início da década de 1970” e ao reconhecer a pertinência atual dessa mesma chaga, Laia localiza qual é, nesse contexto, a especificidade da posição analítica:

Os analistas, assim, para fazerem frente ao pior, se valem não dos ideais (por mais nobres, justos e libertários que estes sejam), mas de um dizer: a relação sexual não existe. Em outros termos, a inexistência da relação sexual, de uma proporção ou paridade entre os sexos, é o furo mesmo do qual se vale a psicanálise de orientação lacaniana para se contrapor ao pior.[1]

A perspectiva não poderia ser mais clara e nos serve como uma diretriz decisiva para tempos conturbados. Nosso desafio clínico e cultural não fica, contudo, resolvido. Afinal, a aplicação dessa orientação impõe questões ulteriores, que nos convocam ao esforço permanente de leitura do real. Para isso, contamos com os debates rumo ao nosso próximo Encontro e, em última instância, com o trabalho de Escola.

Ainda no século passado, Laurent nos lançou a seguinte perspectiva:

 No social, o analista especialista da desidentificação levava a desidentificação a todas as partes […], era um analista que pedia a todos seus documentos de identidade para depois dizer-lhes: “Por favor, passem pela máquina de desidentificação!” […] Se os analistas creem que podem ficar aí, seu papel histórico terminou.[2]

Eu proporia, no cenário atual, acrescentar mais uma camada a essa reflexão: é difícil vislumbrar um papel relevante para o analista que pretenda submeter indiscriminadamente os fenômenos identificatórios, individuais ou coletivos, à máquina da não relação sexual. Ou seja, o analista, de forma universal, é aquele que se orienta pela não relação sexual, mas também é aquele que precisa discernir e tecer, a cada vez, uma conexão entre essa orientação e o real que tem diante de si.[3]

Com isso em mente, proponho acompanhar alguns passos seguintes do texto de Sérgio Laia, especialmente quando afirma que:

[…] se o racismo, como me parece nos indicar Lacan ao final do Seminário 19, é uma das faces do pior, inclusive porque ele se fortalece e se expande no avanço mesmo dos discursos que proclamam que ‘somos todo(a)s irmãos-irmãs’ e que, atualmente, se difundem como ser brother, ser bro, ser mano e, também, como brotheragem, sororidade, ‘mexeu com uma, mexeu com todas’, é ainda mais decisivo que os analistas não se deixem fascinar por tais proclamações. [4]

Dois aspectos desse raciocínio podem, a meu ver, ser desdobrados: um é factual e diz respeito à leitura dos movimentos sociais, outro concerne ao modo de compreender a fala de Lacan. Começo pelo primeiro.

Se há um traço comum nos variados movimentos em questão, ele consiste na recusa das afirmações genéricas de igualdade, uma vez que as condições reais de vida são tão radicalmente desiguais. O que confere a espinha dorsal de sua posição política não é a “proliferação dos dizeres sobre a liberdade, a igualdade e a fraternidade”, à qual Laia se refere, mas justamente o oposto, a denúncia das proposições que pretendem gerar universais políticos sem que existam as mais elementares condições reais para sua enunciação.

Uma referência possível para compreender sua lógica é o livro Armadilha da identidade, de Assad Haider[5]. Ao destrinchar as origens da afirmação identitária contemporânea, Haider retoma movimentos políticos da década de 70 – justamente a época em que Lacan trazia os alertas sobre a escalada da segregação ­–, que demonstraram que os falsos universalismos, inclusive aqueles que orientavam esforços de esquerda, precisariam mergulhar nos meandros das formas de vida para exercerem um real efeito subversivo.

Essa recapitulação histórica ensina que os movimentos emancipatórios que ressaltam traços de identidade não foram deslanchados por frívolas paixões narcísicas, nem por generalidades fraternas e libertárias, mas sim como um esforço de transformar enunciados universais meramente discursivos em realidades ontológicas. Eles demonstram, assim, que universais se degradam quando perdem a capacidade de traduzir algo do real que incide sobre aqueles a quem se endereçam.

Esse tema não é estranho à psicanálise. É muito conhecido entre nós o ensinamento de Freud, formalizado por Lacan, a respeito da exceção necessária à instauração de uma proposição universal. A exceção faz a regra, pois existe a necessidade da segregação de um “particular” na instauração do “todo”. Aí está incluído um aspecto às vezes menos destacado, ainda que um tanto evidente: existe uma distinção entre proposições universais meramente discursivas e aquelas que efetivamente engajam os corpos falantes.[6]

Dito de outro modo, não basta proferir enunciados discursivos de largo alcance, universais precisam ser encarnados para operar de modo legítimo. Esse é o desafio inerente ao cenário cultural que destaca identidades e as traz ao centro dos movimentos sociais. Trata-se de uma reação lúcida às incessantes falhas históricas das proposições políticas de caráter universal, tais como “todos são iguais perante a lei”.

Isto dito, passo à segunda questão que proponho investigar, a de que seria pertinente aplicar a esses movimentos as elaborações de Lacan que detectam o acirramento do racismo. O primeiro passo é um discernimento fino entre causalidade e correlação: movimentos que convivem com um ambiente de intensificação do racismo não são, necessariamente, a sua causa, ainda que possam, porventura, adotar posturas beligerantes.

Lacan aponta, de fato, em mais de uma oportunidade, a ligação entre a escalada da segregação e o avanço de universalidades, mas a elucidação desse aparente paradoxo depende da introdução de um elemento a mais, ainda não mencionado: o mercado. Numa conhecida passagem de 1967, a lógica do seu alerta é explicitada com mais clareza: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação”[7]. Vou recorrer ao desdobramento que Marie-Hélène Brousse faz desse trecho:

Essas mudanças econômicas, políticas e técnicas têm uma orientação comum: elas visam ao universal. É o caso do capitalismo, mercado único, é aquele das revoluções técnicas, que visam uma difusão universal, é evidentemente aquele da ciência, o carro chefe. O momento não convém às paróquias, aos pequenos grupos. Não é tempo de autarcia.  O mundo tende a impor a mesma verdade a todos, como um real.[8]

A escalada da segregação se articula, assim, à ampliação dos universais na medida em que esses supostos universais são essencialmente desencarnados e artificiais, operados através de métodos burocráticos, regulatórios, virtuais, impositivos e anônimos. O acirramento do racismo se deve, assim, muito mais à força brutal de um universalismo radicalmente cínico, imposto por uma versão corrompida do mercado, do que à atuação coletiva daqueles que mal se mantém de pé no tecido social.

O esclarecimento da lógica política da maior parte desses movimentos não deve impedir, no entanto, o reconhecimento de possíveis degenerações. Afinal, qualquer coletivo que se reúne a partir de traços específicos convive, de fato, com o risco de produzir uma homogeneidade forçada, sufocando variações e desencaixes. O foco exacerbado em marcas distintivas pode resultar em um ambiente conflagrado, em que rivalidades e subdivisões ganham vida própria e a relação ao Outro se torna essencialmente querelante. Além disso, atuações centradas apenas na visibilidade e no empoderamento individual tendem a perder sua força subversiva, sendo tragadas com facilidade pela dinâmica mercadológica. Essas são algumas das armadilhas enfrentadas por tais movimentos, que podem, inclusive, inviabilizar o necessário “caminho de volta” para novos universais.

Para evitar o risco bem frisado por Sérgio Laia, o de se deixar fascinar pelos movimentos, não há antídoto melhor que a proximidade com o que há de vivo neles. Deslocamentos surpreendentes convivem com consequências subjetivas deletérias de identificações rígidas; pactos sociais violentos saem da invisibilidade, ao passo que acusações desmedidas atiçam hostilidades.

Trata-se de não se deixar fascinar, mas também de não submeter um fenômeno tão vasto a um único prisma depreciativo. Para tanto, seria preciso evitar que afirmações de identidade fossem lidas exclusivamente através do paradigma clássico da constituição narcísica: um eu rígido, refratário ao estranho, ao inconsciente. Como esclarece Renata Mendonça, nesse mesmo Boletim, “algo do imaginário também se refere ao para-além do especular, do identitarismo ou do eu.[9]

Gostaria, por fim, de frisar o que me parece o cerne da questão: os manejos das identidades têm o desafio existencial de encontrar maneiras inéditas de enlaçar singular, particular e universal – e esse cenário oferece à psicanálise uma oportunidade ímpar de explorar sua relevância clínica e cultural. Para tanto, não bastará usar a experiência da não relação sexual como ferramenta seletiva de deslegitimação, mas sim, estando por ela orientados, captar de que modos afirmações particulares podem, por um lado, ser permeáveis a experiências singulares e, por outro, ajudar na recriação de universais degradados.

 

[1] Laia, S. “A marca do analista”. In: CODA n.04. Boletim do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, jul. 2024.

[2] Laurent, É. “O analista cidadão”. In: Revista Curinga, nº 13, 1999, p.7-13.

[3] Uma referência essencial para essa questão, cujo desenvolvimento não caberia aqui, é a tríade “tática, estratégia e política”, proposta por Lacan em 1958, no artigo “A direção da cura e os princípios de seu poder” (Lacan, J. 1958/1998).

[4] Laia, S. “A marca do analista”. In:  CODA n.04. Boletim do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, jul. 2024.

[5] Haider, A.  Armadilha da identidade. São Paulo: Veneta (Coleção Baderna). 2019.

[6] Teixeira, A. “A fundação violenta do universal”. In: Derivas analíticas n.03. Revista Digital de Psicanálise e Cultura da Escola Brasileira de Psicanálise – MG. 2015. Disponível em: https://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/universal

[7] Lacan, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola” in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1967/2003.

[8] Brousse, M.-H. “Marchés communs et segregation” In: Mental 13. 2003. Disponível em:

https://sectioncliniquenantes.fr/lecture/marches-communs-et-segregation-par-marie-helene-brousse/

[9] Mendonça, R. “Na atualidade, o que dizer sobre o Imaginário?”, in Boletim Coda n. 04. EBP, jul. 2024.

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