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Arte e Cultura

Notas sobre Lygia Clark: corpo e fantasma

Lygia Clark Caminhando, 1963. Crédito: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/189/caminhando

Flavia Corpas
Integrante da Comissão de Arte e Cultura

1.

A artista Lygia Clark (1920-1988) afirmava que a chave de sua pesquisa é a participação do público: “a destruição da barreira que separa o espectador da obra e de seu criador”[1]. Algo bastante inovador à época, e talvez até hoje. Podemos dizer que ela funda uma nova concepção de arte e de obra, por ter esgarçado radicalmente seus limites, ao ponto de sua última proposição, Estruturação do Self (1976-1988), ter sido definida como estética e terapêutica[2]. O caráter terapêutico da proposta não a exclui do campo da arte, mas, sobretudo, transforma esse campo. Trata-se de uma intensa relação entre arte e vida, o que permite que a artista promova uma dobra da arte sobre si mesma, subvertendo seu discurso, interrogando seus limites e fundando o novo[3].

A pesquisa de Clark sobre a participação do público, algo bem distinto da arte interativa de hoje, também deve ser encarada como uma abordagem do corpo. “O que me interessa fundamentalmente é o corpo. E atualmente eu já sei que é mais do que o corpo. (…) Então por trás da coisa corporal, é o que vem de mais profundo que interessa”[4], afirma Clark. Mas de que corpo se trata? Até aqui, parece que ainda estamos “no sentido confuso que guarda para nós o termo corpo”, como ressalta Lacan[5].

2.

A partir de 1963, Clark inaugura uma trajetória absolutamente singular, o que coloca em risco a recepção de sua obra[6]. Tudo começa em Caminhando (1963), ainda que possamos entender que seu percurso anterior, desde os anos 1950, a tenha conduzido às proposições dos anos 1960-1980. É em Caminhando que a artista afirma atribuir “uma importância absoluta ao ato imanente realizado pelo participante”[7]. Tesoura na mão, o participante é convocado, por meio de um texto, a produzir e cortar uma banda de Moebius – figura topológica trabalhada e cortada, de forma distinta, por Lacan em 1962[8]. A artista propõe um corte no sentido do comprimento, até que se chegue à parte já cortada, ponto no qual se deve escolher seguir cortando pela direita ou esquerda[9], a cada vez que chega a um corte.

Segundo ela, as propriedades da banda, que quebram “os nossos hábitos espaciais: direita–esquerda, anverso-reverso etc.”, nos fazem “viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo”, na qual o espectador-autor e o objeto “formarão uma realidade única, total, existencial. Nenhuma separação entre sujeito-objeto. É um corpo-a-corpo, uma fusão”[10].

3.

Chegando aqui, deveríamos nos perguntar, para os objetivos que nos cabem, qual seria o estatuto de corpo em uma proposta que afirma não haver nenhuma separação entre sujeito e objeto. Com Lacan e o matema da fantasia, estamos advertidos de que a punção introduz “uma identidade que se fundamenta numa não-reciprocidade absoluta”[11], ou ainda “registra as relações envolvimento-desenvolvimento-conjunção-disjunção”[12] entre sujeito e objeto a. Além disso, sabemos que um dos usos da banda feito pelo psicanalista permite tomá-la como “lugar-tenente da fantasia, ao qual o corte fornece a estrutura”.

Contudo, tenhamos ainda em mente o projeto estético de Clark nesse momento. No final da travessia de Caminhando, em função do corte proposto, a banda se rompe, caindo no chão um enlaçado de tiras de papel. Fim do ato. O que resta ali não é uma obra. É o corte, enquanto ato[13], que estreia na cena da arte, fazendo-a prescindir assim da noção de obra, mas não do objeto. Se a arte contemporânea mais desvela ou recupera o objeto a do que o vela[14], nesta proposição de Clark o que se pressente é seu caráter inapreensível, não imaginarizável, que a abolição da obra demarca[15].

4.

“O sujeito começa com o corte” [16], afirma Lacan em um momento de seu ensino em que articula corpo, objeto a e fantasma. As proposições de Clark visam o corpo por meio da relação do público, ou melhor, do espectador-autor com o objeto a-rte. É preciso entrar com o corpo. Não porque uma atividade motora está sendo proposta, mas porque ao fazer do espectador o próprio autor, há a possibilidade de subverter a própria lógica do sistema convencional da arte que, tributária do discurso do mestre – a crítica ao status quo da arte sustentada por Clark nos permite essa reflexão – aprisiona os corpos e os petrifica[17]. Se os corpos são suporte do discurso, constituídos por ele, há também o resto e não se deixar agarrar.

Podemos propor, a partir de uma reflexão sobre Caminhando, que o corte, além de implicar sujeito e objeto, diz respeito também ao corpo, não o do estádio do espelho, mas aquele que se faz em ato porque escapa o tempo todo, o corpo na condançação[18]?

5.

Por fim, talvez possamos forçar um pouco os conceitos e dizer que uma escrita possível para o campo de tensão que demarca a relação entre arte e psicanálise seja arte <> psicanálise, onde a punção indica “todas as relações, menos a igualdade”[19].

Desta forma, se o uso da banda de Moebius nos permite aproximar Lacan e Clark, também sabemos que a psicanálise e a arte possuem suas especificidades.

[1] Cf. Diserens, C.; Todoli, V.; Coessens, P. In: Lygia Clark. Fondació Antoni Tàpies, MAC, galeries contemporaines des Musées de Marseille, Fundação de Serralves e Palais des Beaux-Arts, 1997.

[2] Clark, L. “Encontro de Lygia Clark com os psicoterapeutas”. In: Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde. A você cabe o corpo. Musée de Beaux-Arts de Nates, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006, p. 59.

[3] Cf. Rolnik, S. “Arte Cura?” In: Bartucci, G (org.). Psicanálise, Arte e Estéticas da Subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, 2002; Rolnik, S. “O híbrido de Lygia Clark”. In: Lygia Clark. Fondació Antoni Tàpies, MAC, galeries contemporaines des Musées de Marseille, Fundação de Serralves e Palais des Beaux-Arts, 1997; Rivera, T. “Ensaio sobre o espaço e o sujeito: Lygia Clark e a psicanálise”. In: Ágora, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, 2008, p. 219-238.

[4] Clark, L. (2006) Op. cit. Esse a mais do corpo, o “por trás da coisa corporal” é distinto do corpo concreto, empírico ou orgânico. Cf. Rolnik, S. (2002). Op. cit.

[5] Lacan, J. (1966-1967). O Seminário, livro 14: a lógica do fantasma. Aula 16/11/1966. Tradução livre.

[6] Rolnik, S. “Afinal, o que há por trás da coisa corporal?” In: Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde. A você cabe o corpo. (2006). Op. cit., p. 09.

[7] Clark, L. “Caminhando”. In: Catálogo da exposição Lygia Clark. Fundação Antoni Tàpies, 1997, p. 151.

Para ter acesso à íntegra do texto da proposição: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/189/caminhando e https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/6275/caminhando

[8] Lacan, J. (1961-1962). O Seminário, livro 9: a identificação (não publicado). Aula de 16/05/1962.

[9] Clark, L. (2006) Op. cit.

[10] Idem.

[11] Lacan, J. “Kant com Sade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 785.

[12] Lacan, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 641, nota de rodapé 25.

[13] Cf. Clark, L. (1997). Op. cit. “Existe apenas um tipo de duração: o ato. O ato é que produz o “Caminhando”. Nada existe e nada depois”.

[14] Brousse, M-H. “O saber dos artistas”. In: Arquivos da Biblioteca, Rio de Janeiro, nº 5. Escola Brasileira de Psicanálise, junho de 2008, p. 49-62.

[15] Rivera, T. (2008). Op. cit.

[16] Lacan, J. (1966-1967). Op. cit. Tradução livre.

[17] Lacan, J. (1971-1972). Seminário 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p.220.

[18] Vieira, M.A. “Ressonâncias da intradução lacaniana”. In: CODA #02. Boletim do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, maio 2024. Acessível em:

https://encontrobrasileiroebp2024.com.br/index.php/2024/04/30/ressonancias-da-intraducao-lacaniana1/

[19] Rivera, T. (2008). Op. cit.

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