Elisa Alvarenga (AME da EBP/AMP) A “Nota sobre o pai”[1] de Jacques Lacan foi um…
Arte e Cultura
Orlan e o franqueamento do real
Cristiano Alves Pimenta (EBP/AMP)
Orlan pretendeu, com sua “Arte Carnal”, franquear uma barreira que lhe abrisse a “possibilidade de tocar o corpo”[1]. O que está em jogo aí é “uma interrogação do estatuto do corpo, e particularmente do corpo das mulheres”. O meio encontrado por Orlan foi o de colocar em cena, como um objeto de arte, uma série de operações, de cirurgias plásticas em seu próprio corpo, nas quais se vê a perfuração da pele e a exposição da carne viva. O resultado dessas cirurgias não delimita uma imagem, mas faz uma bricolagem de partes do rosto de várias figuras eminentes das artes plásticas: o nariz da Vênus de Botticelli, a testa da Monalisa, o queixo da Psiquê.
O que encontramos no sujeito Orlan diz respeito, justamente, a uma ausência de limites frente ao corpo, ausência que se traduz em um gozo não delimitado falicamente. Quando Orlan fala de sua performance escandalosa O beijo da artista, na qual se lançou a beijar qualquer um que depositasse 5 centavos, ela lembra que “Fora de limite” “era justamente o título da exposição a que foi convidada”. Orlan soube tirar proveito, com sua arte, de sua necessidade irresistível de acessar o real por detrás do belo.
Do corte na tela de Lucio Fontana ao corte no corpo em Orlan
Musso Greco (EBP/AMP)
A obra de Lucio Fontana – a quem Lacan, voltando de Roma, em 1972, se refere na última lição do Seminário 19 – explicita, com sua spaccatura, a via à qual a experiência analítica pode se filiar diante do discurso do mestre que aprisiona os corpos: a do sujeito na sua fenda, pela interpretação simbólica. Outra via é a do Real, por meio do equívoco e da ressonância, do fora de sentido, e Fontana, com seus cortes e buracos, demonstra em ato essa hiância incurável, rompendo com a suficiência do Mestre e do Saber. Fontana faz cortes no tecido e, assim, sem tirar nem pôr nada, cria algo novo, um novo espaço, que revela um vazio. A cadeia significante para o psicanalista, assim como o tecido para Fontana, é o que permite o corte. Se há uma divisão no discurso e uma divisão fora do discurso, uma análise deve lidar com ambas. Lacan analista se reconheceu muito bem na obra de Fontana, talvez por encontrar no fazer do artista algo do que se produz no ato analítico.
Contemporaneamente, seguindo a prática recomendada por Lacan, em suas “Conferências nas Universidades Americanas” (1975), de explicar a Arte pelo sintoma da época – e não pelo Inconsciente –, encontramos na revista Le Nouvel Âne, de 2008, uma longa entrevista concedida a Jacques-Alain Miller pela artista francesa Orlan, que nos serve aqui para apresentar uma nova versão artística do corte, numa resposta sintomática específica. De que maneira o Inconsciente hoje se refere ao corpo? Orlan se tornou notória a partir das suas performances cirúrgicas praticadas de 1990 a 1993, mas interessa também ao nosso campo por ter se tratado psicanaliticamente e ter criado seu nome artístico depois desse processo.
Em seu nome de família, Porte ‒ seu nome completo é Mireille Suzanne Francette Porte ‒, ela encontrou a “Morte” a partir da interpretação que fez de uma intervenção do analista sobre seu pagamento com cheque. E resolveu renascer como Orlan. Esse novo nome, como já apontou Gilson Iannini, em uma discussão no Cartel “Psicanálise e Arte” da EBP, em 2005, guarda uma homofonia interessante com hors + l’un, que remete ao hors de l’Un, ou “fora do Um”, do Um como unário, traço na relação da série dos números inteiros, do registro do numerável, que se suporta na identificação. Esse “fora” remeteria, então, ao Um do “y’a de l’Un” (“há Um”) de Lacan, o uniano, avesso da repetição e da série, não numerável, que é o “Um-todo-só” (Un-tout-seul) revelado a partir do real do número, que não faz laço, que não se conjuga ao Outro. Há, por outro lado, um caráter “fora do sexo”, nem masculino, nem feminino, nesse nome próprio que é também um neologismo – fora, portanto, do alcance dos jogos simbólicos – e que guarda certa proximidade fonética com Horla, personagem fantástica de Guy de Maupassant, que representa a ideia extima (do intimamente fora) do unheimlich de Freud. Há quem diga, no entanto, que Orlan não passa de uma aliteração de “Orlon”, nome de uma fibra têxtil sintética – sem sentido, portanto.
Foi a partir da leitura de um livro de Eugénie Lemoine-Luccioni, La Robe, de 1983, que Orlan colocou em prática suas performances-cirurgias: “Enquanto lia o texto de uma psicanalista lacaniana, a ideia de ir do texto ao ato me ocorreu (da leitura à passagem ao ato)”. O trecho específico que desencadeou essa incomum “passagem ao ato” artístico-cirúrgica se refere à pele como algo “decepcionante”, que se “rasga, se separa, se corta para engendrar”, e que o homem “quer mudar de pele” devido a “um excesso” decorrente da não coincidência entre o ter e o ser. Lemoine-Luccioni afirma assim que a pele é interface na relação do eu com o mundo, e Orlan leva à literalidade a interpretação do caráter osmótico, fino e permutável entre o ser e a aparência, que culmina na implementação de um teatro, onde ficam indistintos os limites entre interno/externo, visível/invisível, eu/não-eu, eu/outro, eu/mundo, privado/público, fantasia/realidade, consciente/inconsciente, corpo próprio/objeto de arte, cena/cenário, sujeito/objeto. Sua pele se torna o retrato absoluto que remete a si mesmo e não ao objeto porventura retratado, mediando essa articulação problemática como suporte de um self-portrait, fora do corpo, mas ainda self.
A “passagem ao ato” assumida por Orlan também merece considerações referentes a certos rumos da arte contemporânea, em relação ao estatuto do objeto e do Outro, tal como os entendemos em Psicanálise. Orlan formula uma arte mestra e libertária que luta contra a tradição cristã, os ditados apriorísticos, os padrões de beleza feminina veiculados pela cirurgia estética, o machismo, as pressões sociais sobre o corpo e sobre as obras de arte, enfim, tudo que vem do Outro como discurso e pede submissão. Como num delírio, o percurso artístico de Orlan denuncia um limite intransponível no Simbólico e apresenta o que há de mais real no corpo (uma figuração do objeto a de Lacan), para criar um novo universo de signos, uma nova ordem no campo da Arte, “Carnal”[2], numa forma de suplência que transmite um estranho êxtase do vazio.
Seu objetivo é atingir o que ela chama de um “novo Estádio do Espelho”. Se o paciente, no ato cirúrgico, se reduz provisoriamente à condição de objeto, na performance cirúrgica de Orlan, o paciente desmistifica o ato cirúrgico, já que o artista muda seu corpo como sujeito da ação, em posição de se servir da maestria da Ciência para questionar a própria Ciência. Estrangeira em si mesma, Orlan cria as condições para que seu eu-(a)-artista, marcado pela presença do Olhar do Outro nas exposições e nas transmissões de vídeo, se confronte com sua metamorfose, seu eu-(a’)-obra de arte, à maneira de um espelho ou do esquema L de Lacan, para a realização de um encontro jubilatório de autorreconhecimento, fundado em uma libidinização do orgânico. Evidentemente, esse jogo imaginário demanda um contorno simbólico para seu sucesso narcísico, e daí decorre a importância de um novo discurso em torno da obra (manifestos, autobiografia poética, web site, textos acadêmicos sobre sua produção) para a construção do eu/nome/corpo/obra Orlan.
Orlan pretende transformar o corpo em língua, invertendo o princípio cristão do Verbo que se faz carne, para a “carne que se faz Verbo”. Em relação a esse corpo que se quer transmutado, há algo que resiste, para além da imagem ou do símbolo, como Eco (a pura voz descarnada) no mito de Narciso. “Só a voz de Orlan restará inalterada”, profetiza a artista, anunciando um desvestimento da carne que destacará, ao fim de um processo próximo à lapidação, o puro objeto vocal despelado de imagens e significantes. A extração da voz real: será este o objeto visado por Orlan em seus “ataques sublimados” à própria imagem e à própria carne? Suporte da palavra e inseparável da fonação, a voz é um dos objetos a listados por Lacan e, inapreensível no espelho, constitui o “forro” (mas não o avesso) do próprio sujeito tomado por sujeito da consciência, resultando de separações primárias dos objetos maternos, como efeitos de cortes de gozo sobre o corpo, marcando o que chamamos de zonas erógenas. As incisões cirúrgicas da “Arte Carnal” materializam esse processo de forma metódica em cada incisão, hemostasia, rebatimento e sutura, tornando os registros borromeanos quase palpáveis, e realizando, na Arte, o impossível autorretrato do gozo.