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Do acontecimento de Um-gozo à clínica acontecimento

Eliane Costa Dias (EBP/AMP)

 Deixemos o sintoma no que ele é: um acontecimento de corpo.
(Lacan, 1976)[1]

O tema do XXV Encontro Brasileiro – a relação entre os discursos e os corpos – nos provoca muitas questões, entre elas: Como a palavra afeta os corpos? Quais os efeitos desse encontro? Qual o manejo d’isso na clínica?

  1. Troumatisme e acontecimento de corpo

O marco introduzido no ensino de Lacan pelo Seminário, livro 19: … ou pior[2] nos aponta que a constituição do corpo e do falasser, assim como o advento do gozo, são da ordem do acontecimento e implicam o vazio.

O mistério pelo qual um pedaço de carne vivo torna-se corpo e ‘ser’ remonta a um trauma primordial localizável no momento em que a materialidade do significante, operando fora do sentido, impacta a materialidade do organismo, produzindo um acontecimento que assinala o acontecimento de Um gozo – “organismo, fluxo da vida e significantes se encontram e se enodam, fixando um modo único e imodificável de gozar. Lacan chamou essa amarração de sinthoma e qualificou esse instante como acontecimento de corpo[3].

Essa marca de gozo não é uma impressão no corpo aos moldes do bloco mágico freudiano, mas uma “lembrança encarnada”. Lembrança que não é sensorial ou do pensamento, mas uma memória na carne de uma experiência de excitação, experimentada como estando aquém ou em excesso em relação a uma suposta homeostase natural.

Bernardino Horne esclarece como a incidência primordial do significante sobre o vivo tem um duplo efeito: por um lado, a satisfação do excesso, de um gozo excessivo, um “tsunami de gozo invasivo”; por outro, o gozo do vazio que se abre no troumatisme. Na bela metáfora de Bernardino: “o vazio que fica nas praias quando a água é esvaziada para formar a onda do tsunami. É o gozo do espiral sem fim da queda no vazio”[4].

Lacan apontou essa característica fundamental e fundante do troumatisme como o caráter “bífido” do significante Um. O que nos ajuda a entender que o trauma primeiro é bífido – vivifica ao mesmo tempo em que mortifica o corpo. Portanto, a satisfação dele decorrente, o gozo como tal, tem essa dupla potência: um gozo do excesso, mortífero, invasivo e desestruturante (como o tsunami); e um gozo, também do excesso, que vivifica o corpo, ainda que acéfalo. Na direção de um tratamento analítico, cabe a via da redução, sem dúvida, mas principalmente, o desafio da invenção de um saber-fazer com a potência vivificante dessa força impossível de negativar e que nos mantém vivos, existentes, insistentes, talvez subversivos, talvez criativos.

Horne[5] chama a atenção para a necessidade de considerarmos que, embora os efeitos dessa complexa operação que está na base da constituição do falasser e que faz do corpo “o suporte do discurso”[6] sejam impossíveis de negativar, eles não são imutáveis. O sinthoma deixa aberta a via para que novos acontecimentos façam iterar o gozo Um, podendo fazer advir “mutações” do gozo – mudanças no nível ou nos modos de gozo mobilizadas no encontro com o real, seja pelas contingências da vida, seja pela contingência do ato analítico.

  1. Clínica Acontecimento

Na última lição do Seminário 19, Lacan pergunta: “Então, de que se trata na análise?”[7]

Como consequência de seu último ensino, transitamos em uma clínica cada vez mais orientada pelo modo de gozo singular de cada analisante.

Retomando a frase lacaniana em epígrafe, Miller enfatiza que precisamos extrair consequências dessa expressão utilizada por Lacan uma única vez e afirma que, na direção de um tratamento, para saber ler o sintoma, o analista é convocado a saber diferenciar as formações do inconsciente dos acontecimentos de corpo:

Com os acontecimentos de corpo, se trata de entidades que têm sentido de gozo, o que é totalmente diferente do sentido de desejo. (…) Quando há sentido de desejo, há comunicação, mas quando há sentido de gozo, há satisfação. (…) A distinção entre comunicação e satisfação remete à distinção entre linguagem e lalíngua.[8]

Miller sugere que poderíamos fazer uma tripartição da experiência analítica: no começo o trabalho com a verdade e o desejo, ao final uma satisfação singular. E entre os dois, mas desde o início, está o “líquido”, o gozo que passa entre os vãos do que é dito, escorre e, eventualmente, faz acontecimento. Acontecimento que não implica necessariamente fenômenos no corpo, mas manifestações que deslizam no trabalho de análise e apontam para o fato de que “as pulsões são no corpo, o eco do fato de que há um dizer”[9]. Se o Um do gozo itera, ele parece estar nos restos, nos pequenos e divinos detalhes deslocados na cena, soltos na fala, apreensíveis na estranheza, no desconforto, na tolice, na equivocidade.

A essa clínica orientada ao real e ao gozo, Miller propõe o termo clínica acontecimento. E é preciso notar que ele não diz “clínica do acontecimento”[10].

Miller nos indica que o ato analítico tem a ver com o acontecimento e com o imprevisto. É, portanto, ele mesmo, um acontecimento imprevisto: tem a ver com saber fazer uso de um lapso, do flash, do instante em que algo do inconsciente real irrompe. No encontro com a surpresa, com a contingência, estar aberto para fazer advir o efeito-sujeito e fazer ressoar efeitos de gozo.

O que significa, então, que a abertura de um analista para operar nessa distorção do tempo e do espaço que é a contingência, depende dos efeitos de seu próprio e singular encontro com os “acontecimentos imprevistos”, desde sua posição de analisante. Na direção de uma experiência analítica, um analista não paga apenas com seu ser, paga também com o que é capaz de fazer dos fragmentos dessa pulsação que não cessa de percorrer e estremecer sua própria carne.


[1] Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 565.

[2] Lacan, J. (1971-1972) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

[3] Frediani, M. S. “Acontecimento de corpo”. In: Scilicet: Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014, p. 39.

[4] Horne, B.; Gurgel, I. O campo uniano: o último ensino de Lacan e suas consequências. Goiânia: Ares, 2022, p. 57.

[5] Idem.

[6] Lacan, J. (1971-1972) Op. cit., p. 217.

[7] Idem, p. 222.

[8] Miller, J.-A. Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015, p. 214. (tradução livre)

[9] Lacan, J. (1975-1976) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 18.

[10] Miller, J.-A. (2015) Op. cit., p. 214. (tradução livre)

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