Nelson Matheus Integrante da Comissão de Arte e Cultura “Na ciranda me batizei e estou…
Triunfo Yorubá
Wilker França
Integrante da Comissão de Arte e Cultura
Para iniciar, conto a história da criação do mundo pela cultura Yorubá que é explicado por meio de uma rica mitologia, que envolve divindades chamadas Orixás. As histórias desses deuses são contadas a partir de itãns, os relatos míticos (lendas), transmitidas principalmente pela oralidade. Contudo, relatarei trechos de uma história que está presente no livro de Prandi[1].
Olodumare, deus supremo, encarregou Obatalá (Oxalá) de criar a Terra, que inicialmente consistia apenas de água e caos. Antes de iniciar sua missão, Obatalá foi aconselhado por Orunmilá, o sábio orixá do destino, a fazer oferendas, mas ignorou o conselho, confiando apenas em seu poder. Seu irmão, Odudua, seguiu as instruções de Orunmilá e fez as oferendas.
No dia da criação, Exu, ofendido por não receber oferendas de Obatalá, quis se vingar e o fez sentir uma sede insaciável, levando-o a beber vinho de palma e adormecer. Odudua, aproveitando a situação, tomou o saco da criação e criou o mundo com a permissão de Olodumaré.
Quando Obatalá despertou, ficou ciente do ocorrido e ouviu de Olodumaré: “O mundo já está criado. Perdeste uma grande oportunidade”. Como consequência de sua falha, nem Obatalá nem seus descendentes podem beber vinho de palma. Contudo, a missão não estava completamente finalizada. Olodumaré lhe confiou a tarefa de moldar os corpos humanos, enquanto ele soprava o sopro da vida, dando origem à humanidade.
O mito da criação na cultura Yorubá se faz com o drama narrativo próprio, um corpo moldado que antes de receber o sopro da vida já era falado, já era disputado e vingado. Se no início era o verbo e se somos filhos do discurso, como nos assinala Lacan no Seminário 19, o mito da criação pela cultura Yorubá já apontava a fraternidade na origem e circunscreve o que claudica como efeito do discurso.
O candomblé, religião de matriz africana, tem suas raízes na tradição religiosa e cultural dos povos Iorubás. Essa religião é ancorada no universo simbólico dos mitos, dos cânticos e das narrativas, bem como dos mistérios, daquilo que é da ordem da experimentação e que nenhuma palavra é capaz de capturar.
Importante destacar que a noção de alma, como aquilo que transcende, é indissociável da noção de corpo nessa religião. Fábio Lima, antropólogo baiano, nos diz que no candomblé “o corpo é mais que “representações” (…) está entrelaçado à noção de existência (…) fundamentada nos mitos e nas experiências corporificadas”[2].
Nos rituais do Candomblé, a dimensão da comunicabilidade está ligada à concepção de tempo, na medida em que o ritmo que será seguido, por exemplo, não é previsto com antecedência. Letieres Leite, grande músico brasileiro, de forma poética, dá indícios da dimensão do corpo, do ritmo e da música no candomblé: “a dança vem antes. A música olha e toca”[3].
Letieres evidencia que os tambores respondem à dança demarcando, assim, uma íntima conexão entre a música e os movimentos do corpo. Importante destacar que o corpo não é visto como pertencente exclusivamente ao sujeito, nem com fronteiras fixas. A relação entre o toque do atabaque, o ritmo e a corporeidade revelam um corpo permeado por influências coletivas e/ou por forças de alteridade significativas. A dança, outro elemento central nos rituais, não é ensinada formalmente, mas emerge de um movimento rítmico e gestual entre o corpo e uma presença, a força do orixá, onde tempo e corpo se entrelaçam, revelando um fluxo entre o interno e o externo[4].
Jésus Santiago[5] destaca, a partir de Freud, uma relação lógica entre a renúncia pulsional própria da religião e a festa que consiste em uma concessão ao gozo, sendo um excesso de satisfação permitido ou prescrito, pois encarna a violação da interdição. Nos rituais de candomblé, está no centro da festa a marca daquilo que se faz estrangeiro ao ser. Como poderíamos pensar a festa que ocorre como parte do rito em que corpos são tomados pela experiência mística?
Para finalizar, trago um trecho de Lacan que demarca que ele conhecia os orixás. Ao interrogar sobre a vontade dos deuses, ele relaciona a natureza do amor com as diferentes iniciações, com as cerimônias das divindades:
(…) o que quer dizer iniciação (…) designando cerimônias muito precisas (…) pode-se encontrar sob a forma de transes ou de fenômenos de possessão (…) Platão nos diz assim que aqueles que tiveram a iniciação de Zeus não reagem no amor como aqueles que tiveram a iniciação de Ares. Substituam esses nomes por aqueles que, em tal estado do Brasil, podem servir para designar tal espírito da terra, da guerra, tal divindade soberana – não estamos aqui para fazer exotismo, mas é justamente disso que se trata.[6]
Nessa direção, entende-se que a permanência do candomblé, suas festas ritualizadas e a cultura Yorubá na cidade ocorrem muito além do arcabouço mítico ou das questões em torno da ontologia, mas sobretudo a partir do exotismo, daquilo que se faz estrangeiro ao ser e que inclui a existência.
[1] Prandi, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[2] Lima, F. Corpo e ancestralidade. Repertório, Salvador, n. 24, 2015, p. 19.
[3] Leite, L. apud Oiveira, B. A dança vem antes. A música olha e toca: a palavra percussiva na canção brasileira. Jornal literário da companhia editora de Pernambuco, n. 178, dezembro 2020, p. 7.
[4] Klein, T. Cad. Psicanál. (CPRJ), Rio de Janeiro, v. 44 n. 47, p. 69-91, jul./dez. 2022.
[5] Santiago, J. A religião é sintoma. Disponível em: https://medium.com/@zadigdocesebarbaros/a-religi%C3%A3o-%C3%A9-sintoma-76cded813155 Acessado em: 13/09/2024.
[6] Lacan, J. (1959-1960). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 307. Este trecho foi um precioso achado de Iordan Gurgel e citado no Fórum La movida Zadig Doces & Bárbaros, realizado em Salvador no dia 13 de setembro de 2024.