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O corpo não aprisionado pelo discurso

Bartyra Ribeiro de Castro (EBP/AMP)

Lygia Clark
Arquitetura biológica, 1968.
Crédito: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/63519/21886-jpeg

Não há sujeito fora da linguagem, mas o autista está fora do discurso[1]. Estas afirmativas de Lacan abrem um campo de debate sobre a estrutura autística.

No final dos anos 1990, Rosine e Robert Lefort publicaram, em A distinção do autismo[2], o que puderam recolher da revisita ao caso de Marie-Françoise[3], das leituras das autobiografias de autistas e das biografias de algumas figuras públicas, propondo o autismo como uma quarta estrutura psíquica. Distinta da neurose, da psicose e da perversão, sua principal característica seria a emergência do S1 sozinho, que não faz laço com S2, chegando a se poder pensar em uma a-estrutura.

Para podermos sustentar esta hipótese, precisamos das ferramentas do último ensino de Lacan: dos conceitos de S1 sozinho, de corpo falante e da pulsão como eco da linguagem no corpo, assim como do Um anterior ao Outro.

Assim sendo, quanto ao autismo, não se pode falar de sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente é aquele que, tendo assentido ao Outro simbólico e às suas consequências, encarna a linguagem que lhe configura um corpo simbolizado, uma localização do gozo no corpo e a queda do objeto a como resto da articulação de S1 com S2. O autista, portanto, está fora do discurso.

Quanto ao autismo, só podemos falar de falasser. Tocado pelo eco do fato de que há um dizer, o autista ouve o murmúrio de lalíngua, sem tradução pela máquina simbólica. É uma linguagem feita para gozar, a céu aberto. Um simbólico sem sistema e sem significação, que é enxame de S1 e que, pela impossibilidade de incorporação, itera. A questão central, nos afirma Patrício Alvarez Bayón, é a materialidade sonora[4]: o significante ressoa no corpo sem localizar o gozo. Com o gozo difuso, há um corpo sem recorte das zonas erógenas, e não há destacamento completo da letra, nem um furo constituído.

Nesta investigação sobre o autismo, duas vertentes se apresentam. A primeira o toma como a-estrutura, conforme a leitura dos Lefort e de J.-A. Miller, segundo a qual há um S1 como iteração, sem efeito de significação, em uma “metamorfose multiplicativa em um enxame”[5]. Um S1 bífido, que tem a cavilha do significante-mestre foracluída, que demarca um excesso, mas não uma falta – o que segue Lacan no Seminário 19: …ou pior[6]. A segunda vertente toma a indicação de Lacan nas duas únicas vezes em que falou de autismo, referindo-se a um congelamento do significante. Esta vertente é tomada por Jean-Claude Maleval e considera que, no autismo, há um tempo da alienação congelada, em que o Um não se remete ao Outro.

Segundo Neus Carbonel, “a foraclusão do S1 no autismo supõe que o corpo está obturado, sem furos para indicar os orifícios da pulsão, sem fronteiras entre exterior e interior (…) que demarquem o exterior como sendo distinto, isto é, diferente e descontínuo de um interior”[7].

O que faz a função de localização e de processamento do gozo é o estabelecimento de uma borda autística como defesa e mediação, por intermédio dos objetos autísticos, da constituição de duplos e/ou do estabelecimento de interesses específicos.

Assim, o autista é um falasser que entra na linguagem pela ecolalia, atravessado pelo enxame de lalíngua. São significantes reais, são signos, uma vez que se colam a um referente. O autista, pois, está em uma relação com a linguagem pelo signo, não pela articulação significante.

A língua dos signos é a marca de que o inconsciente freudiano não está fundado. Não há recalque, desejo, fantasia ou equivocidade significante. Trata-se de um inconsciente real, de uma relação com a linguagem pela via da alienação, sem separação. O S1 retido provoca uma alienação congelada que, igualmente retida, gera um congelamento do significante-mestre que itera, mas que pode, segundo Maleval, chegar a um descongelamento, promovendo uma “enunciação expressiva”, como testemunham os relatos autobiográficos de autistas de alto rendimento.

Maleval propõe que, a partir de um acontecimento traumático, opera-se um esvaziamento de gozo na borda autística. Algo se descongela no S1 e o falasser autista pode servir-se do significante para se expressar por uma enunciação[8].

J.-A. Miller, no entanto, fala de uma iteração provocada por um algoritmo, fadada a retornar sempre ao ponto de partida, no mesmo tempo e no mesmo lugar, sem espaço, e propõe um matema para o autismo: (S1)º à S1 S1 S1 S1 …[9]

Segundo Patrício Alvarez, o autismo está entre lalíngua e a letra, não na linguagem, uma vez que não está submetido às regras sustentadas pelas leis da metáfora e da metonímia. O autista estaria na linguagem somente se considerarmos lalíngua como a substância constituinte da linguagem, que banha o falasser.

Quando o falasser autista extrai de lalíngua uma letra, esta é inequívoca e não permite uma elucubração de saber, não permite a constituição da linguagem como um saber. Um dos sinais mais observados no autismo – a fuga do olhar do outro, logo nos primeiros meses de vida – evidencia um efeito parasitário da linguagem sobre o falasser autista.

O autista é habitado pela linguagem sem fazer uma elucubração de saber sobre lalíngua. Sem o destacamento completo da letra, S1 não se liga a S2, mas pode vir a se ligar a outro S1, possibilitando-o sair da iteração infernal que tanto o toma em sua existência – e isto pode ser uma orientação de tratamento. Segundo Neus Carbonel[10], é visar à passagem da iteração à repetição, isto é, a uma descontinuidade, à inserção do Outro, de um espaço, de um deslocamento, na busca da constituição de um circuito que não passe pelo mesmo lugar e que introduza uma temporalidade.


[1] Lacan, J. (1975). “Conferência em Genebra sobre o sintoma”. In: Opção lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo: Edições Eolia, n. 23, dez. 1998, p. 6-17.

[2] Lefort, R.; Lefort R. A distinção do autismo. Tradução Ana Lydia Santiago e Cristina Vidigal.  Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017.

[3] Lefort, R.; Lefort R. O nascimento do Outro. Salvador: Ed. Fator, 1984.

[4] Bayón, P. A. O autismo, entre alíngua e a letra. Tradução Bartyra Ribeiro de Castro. Vitória: Ed. Cândida, 2024, p. 90.

[5] Miller, J.-A. “Préface”. In: Maleval, J.-C. La Difference autistique. Paris : Ed. Presses Universitaires de Vincennes, 2021, p. 13.

[6] Lacan, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 130.

[7] Carbonel, N. Matinée du CERA, 17 de abril de 2024. Transcrição e tradução livres.

[8] Maleval, J.-C. La Differenca autistique. Paris: Ed. Presses Universitaires de Vincennes, 2021.

[9] Miller, J.-A. “Préface”. Op. Cit., p. 13.

[10] Carbonel, N. (2024). Op.cit.

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