Wilker França Integrante da Comissão de Arte e Cultura Para iniciar, conto a história da…
A ciranda de Lia: uma roda ante o racismo
Nelson Matheus
Integrante da Comissão de Arte e Cultura
“Na ciranda me batizei e estou aqui com a ciranda no meio do mundo”[1]. É assim que Lia de Itamaracá apresenta sua relação íntima com essa expressão da cultura popular nordestina, a ciranda, uma conjugação entre dança e musicalidade, uma causa para sua vida. Foi através da ciranda que Lia fez um nome que deu um contorno à sua existência e se tornou, ela mesma, um Patrimônio Vivo da Cultura de Pernambuco[2].
Seu reconhecimento, a partir da década de 1960, advindo por meio de suas parcerias de trabalho com a compositora Teca Calazans, entretanto, não blindou Lia da experiência de racismo que sofreu ao longo de sua vida. ‘Escurinha’, ‘boneca de piche’ e ‘empregadinha’ foram alguns dos adjetivos utilizados pelo jornalista que escreveu uma matéria, de 1973, onde descreve pela primeira vez a existência de Lia de Itamaracá, até então conhecida em todo o país somente como personagem de uma famosa ciranda, intitulada “Quem me deu foi Lia“, de 1969. Esse recorte revela a naturalização do racismo e da tentativa de segregação que visava apresentar Lia e fazê-la desaparecer, a um só tempo.
Freud, em seu “Mal estar na civilização“[3], já havia apontado para a segregação como tendo sua raiz naquilo que se articularia ao gozo. Será sobre “uma poderosa quota de agressividade”[4] que girará a sua tese sobre o tema. Sobre a possibilidade de considerar o amor uma via pela qual a segregação pudesse ser superada, ele escreve que o outro só “merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, que eu possa me amar nele”[5].
Os efeitos desse narcisismo das pequenas diferenças demonstram na história da civilização as marcas terríveis que fizeram do outro, incontáveis vezes, um objeto de abuso, de violência, de submissão, passível de entrar numa lógica utilitarista, de exploração e de morte.
Nessa mesma direção, Lacan vai falar da palavra irmão, um paradoxo quando se toma como referência o discurso comum. Ele o faz a fim de sublinhar aquilo que se enraíza no corpo, a saber, o gozo. Sobre isso, dirá que é numa “fraternidade do corpo”[6] que reside a raiz do racismo.
Não há espaço para pensar que o racismo é um tema menor, ou mesmo que não pertence à atualidade. Nossa práxis não deixa de nos revelar exatamente a sua presença constante e insistente nos enredos pelos quais a língua faz a civilização existir. O que parece incontornável é saber o que poderia se instalar como possível tratamento dos racismos que se apresentam e seguirão se apresentando no mundo, se haveria uma solução universal para tratar desse gozo em sua pluralidade a partir de nossa ética.
Filha de cirandeira, Lia, que sempre morou em Pernambuco – estado com maior tradição de dança de roda –, na Ilha cujo nome carrega como seu, já nasceu dançando e cantando! A Ciranda representa, por suas músicas e por meio de seus movimentos, os ciclos da vida, o balanço do mar e as brincadeiras de criança. Nela, os que ali estão se dão as mãos em um círculo fechado e dançam numa única direção. “Minha ciranda não é minha só / Ela é de todos nós […] Pra se dançar ciranda / Juntamos mão com mão / Formando uma roda / Cantando uma canção“[7].
O mar, elemento central da vida de Lia de Itamaracá, advém entrelaçado à fé e à ancestralidade que ela canta e dança. Sua força está em buscar na valorização da cultura popular um modo de reafirmar o que da cultura afro-brasileira se faz presente ao longo das gerações. Em um dos passos da ciranda, no compasso da música, o pé esquerdo avança, depois dois atrás e mais um à frente, voltando para o centro da roda de novo. Ao centro, todos erguem as mãos. Cada passo com o pé esquerdo se alinha com o ritmo da zabumba; os ombros balançam na direção da roda onde o corpo segue um movimento de vai e vem, imitando uma onda do mar.
Lia parece de algum modo ter encontrado um enganche entre o que é do universal, aquilo que pertence à cultura, com o que lhe seria próprio, ao saber dar dignidade às marcas de sua diferença. Fez dessa tentativa de fazer dela algo de abjeto o objeto de seu trabalho. Em entrevista à Continente, diz que “a ciranda não tem preconceito. Dança preto, dança branco, dança pobre, dança todo mundo. Caiu na roda, dança!”[8]. E que o racismo se enfrenta de frente. “Lia morre, mas fica a nota no mundo, o trabalho que Lia fez no mundo, já ficou”[9], ela diz. E canta: “Eu sou Lia da beira do mar / Morena queimada do sal e do sol / Da Ilha de Itamaracá“[10].