Ana Tereza de Faria Groisman (EBP/AMP)
Integrante da Comissão Científica
A experiência analítica nos ensina que todo discurso se organiza sobre um fundo de real. O aforisma lacaniano “não há relação sexual” nos remete ao fato de que não há proporção entre os gozos, há sempre um impossível de se escrever em todo laço com a linguagem. Então, a questão que nos põe a trabalhar desde sempre é: como agir com seu ser para tocar o Um da existência?
Nosso meio de ação é a palavra e tudo que ela engendra. O silêncio, o som, o corte e o tempo, são elementos que compõem a interpretação, formas de intervir com a palavra numa tentativa de fisgar o gozo que escapa à linguagem. Segundo Tarrab, “A interpretação é necessária como resposta ao abrupto de real, uma urgência diante de um fora de discurso”[1]. Porém, o “fora de discurso” não está fora da linguagem, e por isso pode ser apontado. Supomos que, em análise, em meio aos ditos, um dizer pode advir como “abrupto de real”[2].
Miller nos lembra que o corpo falante é efeito do laço entre o inconsciente como estrutura de linguagem e a pulsão e tem sua origem no efeito da fala sobre o corpo[3]. O inconsciente estruturado como linguagem se organiza como defesa ao inconsciente real, é uma elucubração de saber sobre o que reverbera de lalingua.
Na neurose, o discurso é um laço com o Outro que aprisiona o corpo, mas não todo o corpo é fisgado por ele. O sujeito inconsciente, os significantes que o localizam e o objeto que o atordoa giram de forma ordenada, circunscrevendo os pontos de articulação e impasse entre eles.
Um maquinário passível de modificação pela interpretação que a cada vez incide sobre ele e denuncia seu caráter de semblante, redobrando o ponto de impossível inerente à estrutura de qualquer discurso: pelo saber não se aborda a verdade do gozo. Pois, como nos ensina Lacan, “o real não é para ser sabido”[4].
Para Lacan, só há análise se chegamos à impossibilidade de governar aquilo que não se deixa dominar. Cada discurso tem sua impossibilidade, seu agente e sua verdade oculta. A passagem da impotência à impossibilidade de um saber sobre a verdade: essa é a barra que o inconsciente impõe[5].
O maquinário discursivo estabelecido por Lacan no Seminário 17 nos serve como um precioso instrumento de trabalho clínico. O que orienta esse discurso, de que lugar ele fala, a quem se dirige, o que ele produz como mais de gozar e, sobretudo, qual é a verdade em causa que permanece oculta? São perguntas que nos orientam, em relação à neurose, quando estamos em posição de escuta ativa.
O discurso do analista é produzido no dispositivo analítico como efeito da interpretação. Sua intervenção produz no sujeito uma nova relação com os significantes-mestres, que outrora o petrificavam. No discurso do analista, eles se deslocam do lugar de causa (de saber, de sofrimento, de aprisionamento) para o lugar de uma produção discursiva disjunta do saber, que nos demais discursos, se acoplaria a eles.
Isso que nos orienta na clínica é eficaz para lermos a subjetividade da nossa época? Podemos, com esse maquinário, interpretar o laço social coletivamente?
Freud, em “Psicologia das massas e análise do eu”, nos autoriza a ler as massas como a reunião de várias subjetividades, levando-nos a concluir que o que vale para o sujeito do individual pode ser aplicado ao coletivo[6]. Nesse sentido, estaríamos em posição de escuta se tomarmos o discurso de nossa época a partir das balizas que nos orientam na clínica. É uma tentação e talvez uma proposta para fazermos uma leitura sobre os discursos que dominam a atualidade ou de grupos específicos. Porém, é preciso ter cuidado e não esquecer que o psicanalista, enquanto função, está incluído no discurso analisante e autorizado a interpretar pela transferência, é de dentro que algo pode ressoar como interpretação. Por isso, é importante perguntar: o que nos autoriza na relação com a cultura? O que recolhemos em nossos consultórios, além de nos orientar na escuta singular de cada sujeito, pode cernir algo de particular de nossa época?
A questão que a psicanálise denuncia e talvez por isso entendemos ser o único discurso que não visa à dominação, é o caráter de semblante que sustenta qualquer discurso. Como afirmou Lacan, “tudo que é discurso, só pode dar-se como semblante, nele não se edifica nada que não esteja na base do que é chamado significante”[7].
Ao tomarmos cada discurso como um laço entre a linguagem (S1 – S2) e o corpo ($ – a), como podemos pensar as psicoses e os desenlaces com o corpo, com a linguagem e a consequente ruptura do laço social que se produz? O psicótico está na linguagem. Porém, ao afirmarmos que a linguagem não morde o corpo, podemos dizer que ele está no discurso?[8] O que prende o sujeito psicótico ao corpo que habita é da ordem de um dizer? Esperamos recolher exemplos clínicos que possam nos ajudar a seguir nesse caminho de pesquisa.
As psicoses, assim como a psicanálise, embora por vias distintas, denunciam o fracasso que se inclui em todo semblante. Ao tentarmos dar conta do Real pelo simbólico, há sempre um resto, que separa o corpo e a linguagem. Mirmila acabou de nos brindar com um belo exemplo disso a partir da fala do paciente entrevistado por Lacan.[9]
Aproveito a referência que ela nos traz para tentar ilustrar os efeitos da língua sobre o corpo, fora do dispositivo discursivo da neurose. Além do trecho já destacado por ela, em outros momentos da mesma entrevista o paciente deixa clara sua relação estrangeira com a linguagem, que o invade sob a forma de “falas impostas”, diz estar submetido a um “sistema anárquico”, onde imagens passam sem que possam ser formuladas e palavras deslizam umas sobre as outras, criando neologismos fora do sentido comum. Ele está isolado num mundo “sem fronteiras”: “o que passa pelo meu cérebro é ouvido por certos receptores telepatas”[10]. Tudo isso dificulta bastante seu convívio em sociedade: dizer-se poeta e renomear-se como um pássaro raro são recursos insuficientes para fazer borda ao real que o invade. Lacan, ao final da entrevista, parece pouco otimista em relação ao que se pode esperar desse paciente.
Quando abordamos a clínica das psicoses, a conceituação do dispositivo analítico como um discurso nos deixa em solo arenoso; o que antes parecia nos colocar em uma boa posição, aqui nos faz vacilar, não recuamos, mas precisamos encontrar novas balizas de orientação. A virada conceitual que começa a se desenhar no Seminário 20, com suas rodinhas de barbante, é fundamental para nos reorientar na clínica em direção ao real[11].
No Seminário 23, Lacan aproxima o nó borromeano da esfera armilar, antigo instrumento de navegação, fundamental na orientação das rotas marítimas[12]. Gosto de pensar na topologia dos nós como algo similar, um importante instrumento de leitura que nos indica um caminho. Sobretudo na clínica das psicoses, mas não só. O nó é também pensado como um laço que localiza o objeto, o falasser e seus campos de gozo. Com ele, podemos cernir, a partir da amarração borromeana, o que aparece para cada sujeito como fruto do laço entre o corpo, a linguagem e o gozo.
Os campos de interseção entre os registros localizam a incidência do gozo, suas bordas e suas sombras. O gozo do sentido, o Gozo fálico e o gozo do Outro, assim como os efeitos de inibição, sintoma e angústia que se produzem como respostas à invasão desses gozos, são localizados a partir do lugar que cada sujeito costura para si em sua relação com o objeto que o determina. O Nome-do-Pai e o significante que o representa () são semblantes que organizam o laço com o Outro. Elementos que nas psicoses estão forcluídos, restando a cada um inventar à sua maneira o que poderá fazer função de barra e suporte no laço com seu corpo e com o mundo que o circunda.
O que faz função de laço com a linguagem, qual o objeto em questão e o que estabiliza o corpo, para cada sujeito, são questões fundamentais que nos orientam na clínica das psicoses.
No desenho do nó, podemos demonstrar o que faz função de limite para cada campo de gozo. Assim, se o simbólico é o que enlaça o real e o imaginário, é também o que fura o gozo do Outro. Ao mesmo tempo, o laço entre imaginário e simbólico, campo dominado pelo sentido, encontra no real seu limite. Por fim, o que mais nos interessa aqui, se abordamos o nó pelo que enlaça o simbólico ao real, é o imaginário como corpo que escapa no gozo fálico.
Se tomarmos de forma bem reduzida, o simbólico como furo, o real como o gozo que ex-siste e o imaginário como corpo que suporta a inscrição de ambos, somos levados a concluir com Lacan que o gozo fálico é um gozo experimentado fora do imaginário do corpo.
O corpo imaginário responde à consistência mental que temos dele, sabemos que não somos um corpo, mas acreditamos tê-lo, o que nos permite adorá-lo, manipulá-lo, customizá-lo em conformidade com a época, ou em caso de competências extraordinárias, lançá-lo em triplos mortais carpados.
Porém, o gozo fálico como paradigma do gozo fora do corpo nos lembra que esse corpo “cai fora a todo instante”, o que revela que nem somos, nem temos um corpo. Isso nos obriga a um trabalho psíquico com a fala, para enlaçar esse gozo à consistência mental que temos do corpo[13].
Então, se na psicose nos deparamos com um corpo fora do discurso, na neurose concluímos que não todo o corpo entra no discurso, há algo que escapa e retorna sob a forma de um acontecimento, fora do campo do sentido. Como bem disse Caretto, “Um acontecimento de corpo se situa sempre no cruzamento e no encontro contingente e sempre faltoso entre a linguagem e a carne”[14].
Aqui, podemos incluir, como exemplos, a perda do olhar que a criança contingencialmente experimenta, fazendo-a desaparecer frente ao Outro, ou as primeiras ereções registradas pelos meninos em seu corpo. A fobia de Hans, por exemplo, foi o tratamento espontâneo que encontrou para alojar esse gozo invasivo e manter-se íntegro à sua maneira.
Para concluir, trago uma cena de um menino que aos 3 anos, enquanto brincava sozinho, exclamou: “Quê que esse piru tá grande?!” Uma fala que não foi dirigida a ninguém. Porém, no mesmo dia, dirige-se ao pai e aponta para seus braços, pernas e pé dizendo: “Você viu como meu braço cresceu? E essa perna, viu como tá grande? Olha esse pé que enorme!” Assim, o pequeno macho pode restituir para si, através da fala e aos olhos do Outro, a unidade de seu corpo, fazendo-o crescer por inteiro na tentativa de dar lugar ao gozo que irrompe para além dos limites previstos.
[1] Tarrab, M. Interpretação. Scilicet – As psicoses ordinárias e as outras: sob transferência. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018. p. 223.
[2] Agradeço a Oscar Reymundo, Mais-um do Cartel de que participo, que, ao ler meu texto, fez a pergunta-chave: “Um dizer pode ser lido como um abrupto de real?”.
[3] Miller, J.-A. Habeas Corpus. Scilicet – As psicoses ordinárias e as outras: sob transferência. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018. p. 13.
[4] Lacan, J. Radiofonia. (1970) In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 442.
[5] Ibidem, p. 445.
[6] Freud, S. A psicologia das massas e a análise do Eu. (1921) In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 137. (Obras incompletas de Sigmund Freud)
[7] Lacan, J. O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. (1970-1971) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. p. 15.
[8] Eixos temáticos. Disponível em: https://encontrobrasileiroebp2024.com.br/index.php/o-encontro/eixos-tematicos/.
[9] Mirmila Musse, membro da EBP/AMP, apresentou um texto na mesma ocasião.
[10] Lacan, J. Uma psicose lacaniana: entrevista conduzida por Jacques Lacan. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 26/27, p. 11,12 e 13. 2020.
[11] Lacan, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 160.
[12] Lacan, J. O seminário, livro 23: O Sinthoma. (1975-1976) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 35.
[13] Ibidem.
[14] Carreto, S. Acontecimento (e gozo do corpo). Scilicet: O corpo falante: sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016. p. 33-34.