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Lygia Clark
O dentro é o fora, 1963.
Crédito: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/118/o-dentro-e-o-fora

Mirmila Alves Musse (EBP/AMP)
Coordenadora da Comissão Científica

Por longo tempo, falei sobre o hiato entre o corpo e a mente. […] Qual o momento em que o corpo entra na mente, ou a mente entra no corpo? Não sei, estava obcecado. Como? […] Como um fato biológico torna-se espiritual? De que forma há um compartilhamento entre corpo e mente? […] Eu tinha sido levado a pensar nisso, observando que a biologia considera que essas ondas estão no cérebro; fui levado a pensar que o pensamento, ou a inteligência, era uma espécie de onda projetada, uma onda direcionada para fora, mas a linguagem […]

Este fragmento é parte de uma apresentação de paciente realizada por Lacan em 1976[1]. Seguindo a pista dessa entrevista, inferimos pelo paciente que a linguagem faz barreira em atestar que biologia e a ciência justificam o hiato entre mente e corpo.

A linguagem enquanto discurso instaura o laço social, e isso é semblante. O dito é outra coisa: ele funda um fato e, se quisermos, todos os fatos. É a função da fala, não ela em si, que permite acessar o inconsciente. A linguagem é uma estrutura lógica e falar dela por ela mesma é metalinguagem, ou seja, ficção. Lacan desloca esse significante: a linguagem como meta é efeito da sexualidade. Ele se pergunta: “Será que o ser falante é falante por causa de alguma coisa que sucede com a sexualidade, ou será que essa alguma coisa sucede com a sexualidade porque ele é o ser falante?”[2]. A linguagem funda a sexualidade na medida em que coloca a problemática no binarismo do que é ser homem ou mulher.

Os valores sexuais sociais determinam, não importa em que tempo, o que é ser homem ou mulher com atributos aceitos por uma língua, mas que podem ou não serem aceitos pelo sujeito. Esses valores designam um modo de gozo universal baseando-se na diferença binária da sexualidade. Por outro lado, o discurso do mestre, seja na época do patriarcado, seja atualmente, sempre negou e negará o inconsciente. Essa é a base do discurso do mestre. Por isso, também não importa a que tempo, haverá sempre um mal-estar do sujeito que continuará se angustiando com o impossível da relação sexual.

São os semblantes e a inscrição de um discurso que abrigam um gozo para todos que estão em xeque nesse momento. Poderíamos dizer que o declínio de um ideal universal é responsável pela “crise do binarismo”[3]? Ou o binarismo ainda é a lógica que sustenta esse discurso? Os sintomas contemporâneos continuam signos da não relação sexual? Ou ainda, como questiona Miller na entrevista com Éric Marty sobre o livro Les sexes des modernos[4], o significante gênero substituirá o significante sexo?

O futuro não será cor-de-rosa, diz Lacan, assim como o do patriarcado também não foi, pois sempre haverá quem assombre a família. Se não é mais o pai, “[…] vai-se encontrar coisa melhor”[5]. Nesse momento de evaporação do pai, Miller[6] descreve três posições do analista: os fundamentalistas que acreditam no simbólico da tradição; os parasitas que consolidam um refúgio imaginário; e os progressistas com a crença e a adesão ao real da ciência. Respectivamente, os três tentam reconstruir a “inconsistência do papai”; a convicção de que nada aconteceu e que o inconsciente é eterno; e os que tentam “arregimentar a psicanálise conforme o real da ciência”. Há uma quarta posição: avalizar a enunciação do sujeito, questionando o efeito da estrutura do discurso. Já que o que se fala não é o sentido, a verdade ou o enredo, ocupar a função de analista é instalar no corpo, como semblante, aquilo que fala, dando lugar ao que o sujeito inventou para ocupar a impossibilidade de escrever a relação sexual. A linguagem poderia ser descrita como Chico Buarque descreve seu último livro: “um papel de parede reproduzindo o que ele ao mesmo tempo esconde”[7].

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Com o Complexo de Édipo, Freud propõe uma ordem simbólica a partir do mito determinante de como cada sujeito escolhe uma identificação sexual. Lacan, em 1958, retoma a lógica binária freudiana e conceitua a sexuação. Tanto do lado masculino quanto feminino, a diferença não é anatômica, mas baseada na lógica da presença/ausência do falo e da significação fálica. Ter ou ser o falo supõe simbolicamente o universal da castração. Por outro lado, a psicanálise nunca estabeleceu uma simetria entre os sexos. Pelo contrário, o descompasso do corpo com a sexualidade faz a psicanálise existir.

A tríade dos seminários 18, 19 e 20 formaliza a sexuação pela lógica do gozo e faz o binarismo deixar de existir[8]. A lógica de uma programação do gozo indetermina os significantes “homem” e “mulher” e a linguagem não assegura sua existência – isso é proibido por sua própria estrutura. Mesmo nos banhando nela, é o real que comanda a função da significância[9]. A impossibilidade da sexuação se faz no lugar da falta de significância, é ali que o gozo perturba, fisga, aprisiona e parasita o corpo. Se há corpo, há gozo; se há um dizer é porque a pulsão permite que esse dizer seja sentido no corpo como um eco[10].

O gozo do corpo fala quando se fala. A linguagem funciona, “desde a origem, como suplente do gozo sexual. Através disso ela ordena a intromissão do gozo na repetição corporal”[11]. Se quisermos saber a diferença entre ser homem ou mulher não devemos procurar no sexo, nem na linguagem, mas no gozo. Por isso, para a psicanálise, não existe segundo sexo[12].

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Com o declínio da função paterna, cada ser falante incorpora a exceção daquilo que em outros tempos universalizaria o gozo. Se a concepção de “gênero” na atualidade questiona a lógica binária, é a posição feminina que faz essa questão para psicanálise, por ser também estruturada pela lógica da exceção. Por exceder à medida fálica, o feminino faz objeção ao binarismo do falo e da castração que operaria, como metáfora, a diferença sexual.

Na apresentação de um paciente antes referida, depois de fazer referência à maquiagem de uma das mulheres que estavam na plateia, Lacan pergunta:

– Você algum dia já se maquiou?

– Sim, aconteceu de eu ter me maquiado. Aconteceu quando tinha 19 anos, porque tinha a impressão de que o sexo encolhia e, ao mesmo tempo, desejava saber como era uma mulher, tentava entrar no mundo de uma mulher. Na psicologia de uma mulher, na formulação psicológica e intelectual de uma mulher. Era uma esperança e uma experiência. […] É na esperança de que fosse experiência.

O paciente sabe que seu sexo nada lhe garante sobre sua posição sexual. Ele recorre ao que nos tempos idos era signo do feminino, na esperança de acessar o mundo da mulher.

A lógica feminina marca a impossibilidade de fazer com que o Outro seja um orientador determinante da sexuação do Um, porque não se deixa, toda ela, ser capturada pelo significante. O Um é a diferença absoluta, não aceita um atributo, uma classe, um predicado, e não crê tanto assim no semblante. O Um é como Miller nomeia o gozo verdadeiro no curso O Um Sozinho. Nesse sentido, Lacan dirá que o ser sexuado, assim como o analista, “não se autoriza senão de si mesmo… E de alguns outros.”[13]

Ou seja, não é porque o discurso contemporâneo não acredita mais no Outro que a sexuação passou a corresponder a uma modalidade de gozo. A psicanálise também nunca acreditou que esse Outro poderia responder a diferença sexual: “O Outro só se apresenta para o sujeito em uma forma a-sexuada”[14]. Se não há Outro para situar o gozo, ele passa a ser o próprio corpo.

O Um é o orientador da investigação clínica na medida em que determina a diferença absoluta da sexuação. É a programação de gozo que vai sustentar a diferença sexual, na tensão entre o real da sexuação e o dizer em análise. Miller afirma que o Seminário 19 é “O pensamento radical do Um-dividualismo moderno. A tentativa de um discurso que partiria do real”[15]. Esse termo reúne o gozo do Um e o significante “indivíduo”, caracterizado por uma estrutura de pensamento indivisível e determinado pela certeza de um dizer. O Um-dividualismo parece ser uma questão mais para o analista do que para o paciente: a certeza de “se dizer” identificado a um sexo fecha as portas para qualquer dialética e divisão subjetiva na lógica discursiva. Como o analista acolhe e maneja o discurso da certeza? Como ele toma o gozo como orientador da interpretação? Mais uma vez estamos diante da interpretação e suas implicações sem efeito na lógica discursiva.

Alguns vídeos do canal Lacan Web TV, no YouTube, se dedicam a pensar o Um-dividualismo e abordam a diferença entre o particular e o singular. O primeiro, mesmo determinado por uma certeza, permite fazer laço, reconhecendo uma semelhança (mesmo que imaginária) em certo traço de gozo. Há um S1 comum que agrupa coletivos, pede reconhecimento do Outro ao mesmo tempo que exclui o diferente. Já o gozo do lado do singular organiza a existência do sujeito em seu sintoma, em sua fantasia e em sua diferença absoluta.

Com isso, voltamos sempre ao mesmo lugar, en-core e en corps, de novo no corpo. A identidade não é um conceito para a psicanálise, mas é determinante, mesmo que imaginariamente, para aquele que chega ao consultório. Como o analista pode ser dócil ao discurso e manejar essa fixidez do gozo? Como localizar o gozo imaginário que se apresenta associado à imagem corporal nas questões do sexo? Nas performances das imagens que velam e se fazem velar? No gozo da falação do simbólico que introduz o vazio e opera a fala? E no real, que retorna no corpo[16]?

A nomeação de uma escolha sexual é acompanhada de um predicado ou adjetivo: um homem feminino; um homem hetero-macho; uma mulher empoderada; a necessidade de se afirmar sexualmente em um lugar de pertencimento; o começo da vida sexual; a relação tóxica etc. Como esvaziar os sentidos do discurso para se chegar em uma nomeação? Como diz Carlos Drummond de Andrade: “Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos, e use o substantivo”[17]. O predicado que o sujeito acopla à sua existência, a seu des-ser, só nos interessa na medida em que se apresenta como estrutura de um discurso para revelar um modo de gozo.

Como o analista maneja e quais impasses ele encontra nessa passagem do particular para o singular? Quais arranjos possíveis o sujeito encontra para se nomear um ser sexuado? Como localizar o objeto na função de obturar o gozo que o vazio implica? E para fazer ou não laço social? Como esse traço de gozo no discurso da identidade é determinante para a escolha de um analista? E como manejá-lo? O que o analista pode fazer com isso? Como sair da demanda do reconhecimento social das comunidades de gozo para o singular da diferença absoluta? Como o gozo, condensador do objeto a, enoda os registros real, imaginário e simbólico?


[1] Lacan, J. Uma psicose lacaniana: entrevista conduzida por Jacques Lacan. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 26/27, p. 8, 2020.
[2] Lacan, J. O seminário, livro 19: … ou pior. (1971-1972) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. p. 93.
[3] Fajnwacks, F. Erosão do binarismo e ascensão do fluido. In: FAJNWAKS, F. Despatologizar o sujeito trans e outros ensaios lacanianos. Belo Horizonte: Scriptum, 2023. p. 52.
[4] Miller, J-A. Entrevista* sobre Le sexe des Modernes. Disponível em:
[5] Lacan, 1971-1972/2012, op. cit., p. 200.
[6] Miller, J.-A. Uma fantasia. Disponível em: https://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
[7] Buarque, C. Bambino a Roma: ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2024. P.81
[8] Bassols, M. Fundamentos da sexuação em Lacan. Latusa, EBP – Seção Rio, n. 26, 2022.
[9] Lacan, 1971-1972/2012, op. cit., p. 29.
[10] Lacan, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 18.
[11] Lacan, 1971-1972/2012, op. cit., p. 42.
[12] Lacan conta sobre sua discordância com Simone de Beauvoir no Seminário 19, p. 93.
[13] Lacan, J. O seminário, livro 21: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Aula de 9 de abril de 74. Inédito.
[14] Lacan, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 135.
[15] Lacan, 1971-1972/2012, op. cit., texto da contracapa.
[16] Miller, J.-A. As prisões do gozo. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 54, p. 13-26, 2009.
[17] Andrade, C. D. A um jovem. In: ANDRADE, C. D. A bolsa & a vida: crônicas. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962. p. 117.
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