Marcelo Veras (AME da EBP/AMP)
Integrante da Comissão Científica
O título do Eixo 2, “Incidências do discurso da ciência sobre os corpos”, traz de imediato uma afirmação que nos serve de bússola, pois, ao perguntarmos qual a incidência do discurso da ciência sobre os corpos, inferimos que os corpos não são propriedade do discurso científico, este apenas incide sobre eles, assim como incide no Outro social. Contudo, tal como Napoleão, que se auto coroou Imperador da França, a ciência assumiu o Discurso do Mestre contemporâneo e se autoproclamou detentora da verdade sobre os corpos. Mas eles são afetados igualmente por outros discursos, como o político, o religioso ou o histérico. Seria igualmente o caso do Discurso do Analista? Eis um programa de pesquisa para o nosso Encontro: qual a especificidade do Discurso do Analista diante da babel discursiva? Para o cientista Javier Peteiro, autor do livro O autoritarismo científico, a ciência “pensava ser (e se depender dos cientistas continua a pensar) algo que se constrói como o desvelamento de um real no qual o sujeito não participa”[1]. As concepções de corpo são distintas para a ciência e para a psicanálise. Enquanto, para a primeira, o corpo é cadaverizado pelo saber, para a psicanálise, a substância gozante é a vida, que faz furo no real.
O cérebro é domínio das neurociências, mas não podemos dizer o mesmo da mente humana. A mente depende do cérebro para pensar tanto quanto a visão depende do olho para enxergar. Nos dois casos, um não pode ser reduzido ao outro. Quer seja pela neurologia, quer seja pela psiquiatria clássica, a psicanálise avançou paulatinamente para se desfazer, ela também, do enclausuramento do discurso científico. Lacan, em uma apresentação de pacientes, deu um giro de perspectiva na separação entre mente e corpo propondo outro par: doenças da mentalidade e doenças do Outro[2]. Ou seja, para Lacan a mente é corpo, a alteridade se faz com a linguagem.
É assim que Jacques-Alain Miller pavimenta o caminho da passagem do primeiro para o segundo ensino de Lacan ao afirmar que o estruturalismo, do qual a psicanálise lacaniana foi tributária em seu início, preparou a via do cognitivismo[3]. Para ele, o estruturalismo foi uma primeira forma de pseudociência que encontrou seu ápice no cognitivismo, ambos ancorados na exclusividade do S2. No mundo desenhado por essas disciplinas, não há espaço para o sujeito, para o objeto a ou para o S1. Estaria aí a primeira base da identificação do homem à máquina[4]. A miragem dessa identificação se espraia popularmente, tanto nos trabalhos científicos quanto nas histórias de ficção científica ou nas invenções cada vez mais surpreendentes advindas da inteligência artificial. A popularidade dessa fantasmagoria vem do apaziguamento que pode trazer a ideia de que ancoraríamos o Ser em uma ciência de cálculos, protocolos universais e cifras. Mas o discurso da quantificação vai mais além, pois permite igualmente monetizar o Ser e inscrevê-lo como mercadoria do livre comércio.
O convite aos trabalhos de nossa jornada clínica leva em conta os impasses da ciência pura diante do inconsciente, pois a clínica que inclui o falasser é uma clínica impura, feita justamente com os pequenos detalhes, como o estilo e a letra que Lacan identificou desde muito cedo nos seus textos psiquiátricos. Já nos anos 1930, ao comentar um caso de esquizografía, Srta. C., Lacan se dedica à leitura das cartas da paciente para isolar uma arte poética na qual ela havia desenvolvido um estilo[5]. Como em Freud, percebemos que o ultimíssimo Lacan traz elementos do primeiríssimo. Ou seja, muito cedo Lacan se desloca da claridade das evidências para afirmar seu gosto pela “fidelidade ao envelope formal do sintoma”[6].
O sonho do cientista, e o que lhe traz angústia, é o próprio conceito de ciência pura. Para pensarmos a clínica psicanalítica nos tempos atuais, devemos seguir o convite de Lacan e nos aproximarmos do horizonte subjetivo de nossa época. Para os que não são terraplanistas, a linha do horizonte é justamente o litoral que nos permite ter uma visão do futuro enquanto ainda avistamos, ao olharmos para trás, as terras que abandonamos.
Se o século XX foi o século das máquinas, o século XXI é aquele em que o corpo e os limites do humano estão em questão. O imediatismo do gozo dos gadgets, dispensando os caminhos do desejo, provoca um encurtamento temporal, deixando pouco espaço para o sujeito. É o que Lacan afirmava já no Discurso de Roma: “A ciência avança sobre o real ao reduzi-lo ao sinal. Mas ela também reduz o real ao mutismo”[7]. Não por acaso, a angústia da proximidade do objeto gerou uma epidemia de síndromes do pânico, casos em que o sentido das palavras não é de grande utilidade.
As novas tecnologias de comunicação mudaram substancialmente os pacientes que chegam à clínica psicanalítica. As gerações mais novas são as mais afetadas. O smartphone deixou de ser um aparelho de comunicação para se tornar um apêndice corporal, um novo órgão[8], como afirma Éric Laurent, com fins sexuais. Um estudo recente demonstrou que o tempo de permanência diante de uma mesma imagem na tela é muito curto[9]. Um jovem permanece em média apenas vinte segundos, por exemplo, em uma mesma imagem do Instagram e em seguida ele se desloca para outras plataformas, seja TikTok, Facebook ou WhatsApp, permanecendo apenas outros vinte segundos na imagem seguinte.
Como nossa prática pode acompanhar essa contração temporal? Entre o instante de ver e o momento de concluir, ambos tempos exclusivos do sujeito, temos o tempo para compreender, que é o tempo do diálogo com o Outro[10]. Quando o Outro é reduzido a 20 segundos, o sujeito vive a angústia de ver e concluir na precipitação, o que leva jovens adolescentes, que mal passaram por uma situação de bullying ou decepção afetiva, a tentar de imediato se matar. Aqui vai um convite para trazer as invenções singulares que o analista produziu diante dessa vacuidade do Outro[11].
Esse é um dos paradoxos da rede, que é denominada de “social” quando, na verdade, relança cada um em sua própria condição de um gozo narcísico solitário, configurando uma clínica de S1’s que não fazem apelo a nenhum S2. O discurso da ciência, ao exilar o paciente de sua palavra, reduz a clínica a um incessante instante de ver… para diagnosticar. Os que trabalham com a psicanálise nos hospitais sabem que, cada vez mais, a ação do clínico no sofrimento psíquico e na urgência subjetiva vem sendo aprisionada por protocolos diversos: protocolo de suicídio, de ansiedade, dos estados depressivos.
Ironicamente, no futuro, essa será a grande ameaça para uma clínica baseada exclusivamente em evidências, pois nela é bem possível substituir o psicólogo por um Robot. Como afirmou Gilson Iannini, em um debate recente, não são os psicanalistas os mais ameaçados pela Inteligência Artificial, mas são os psicólogos das TCC’s que correm mais risco de ficar desempregados. O inconsciente real é justamente o que não é evidente, aqui os semblantes fracassam.
A questão não é mais se as máquinas vão ganhar partidas de xadrez dos humanos, a questão é que, ao ganhar, elas não gozam, são os programadores que gozam. Subsiste por trás dessa solidão a pulsão silenciosa instrumentalizada a serviço do mercado de consumo que impulsiona as adições.
Com a pandemia, foi possível constatar que a Ciência não é capaz de apaziguar com sua verdade – basta recordarmos a fenda aberta no Outro entre os que apoiavam e os que rejeitavam a vacinação. O sujeito contemporâneo está mergulhado nessa trama de Ciência e pseudociência que impulsiona uma batalha dos discursos e o reforço das posições identitárias em detrimento do sintoma de cada um. Daí que é importante pensar a clínica da violência sem reduzi-la a uma questão sociológica. Seria ela um sintoma na civilização ou, ao contrário, o destino da pulsão de morte em uma sociedade sem recalques?
Lacan, em seu último ensino, relativiza a ficção do Nome-do-Pai para fundar o afeto fundamental da relação com o Outro, que é o ódio. Ele o funda diretamente sobre a relação ao gozo como ponto de rejeição, de expulsão do Outro que releva da Austossung, a expulsão primordial que situa o sujeito frente ao Outro. Miller sublinha, a propósito da oposição freudiana Eros/Thanatos: “o adversário do amor não é o ódio, é a morte, Thanatos. É preciso diferenciar a violência do ódio. O ódio está do mesmo lado do amor. O ódio e o amor estão do lado de Eros”[12].
Irrompe, desse modo, uma clínica em que os corpos estão cada vez mais etiquetados, mas sufocados pela falta de palavras. Quantas fibromialgias poderão, na verdade, ser a expressão de uma histeria rígida? Quantos lutos são tratados como depressão e medicados imediatamente? A neurose obsessiva foi evacuada de toda culpabilidade inconsciente e convertida em TOC, mera exposição dos fenômenos quantificáveis. Os efeitos do mergulho da humanidade no campo das redes sociais foram rapidamente identificados como patologias de alienação e separação do Outro. Os resultados do imperativo “todos conectados” se fazem ver no aumento sem precedentes de diagnósticos de hiperatividade, bem como a rejeição desse Outro digital invasivo que, igualmente, gerou a inclusão indiscriminada de milhares de crianças no espectro autista.
A ideologia da cifra e o neuro-paradigma fundam discursos sem um mais além, que produzem uma vacuidade semântica. Lacan afirma que o progresso da ciência “faz desaparecer a função da causa”[13], no sentido em que se produz um “isso quer dizer alguma coisa” ali onde “se rompe a implicação do sujeito em sua conduta”[14].
Em nossas jornadas clínicas, esperamos casos que demonstrem uma clínica enraizada na unicidade do caso. Um caso não deve ser escolhido pela sua tipicidade, mas, ao contrário, pela sua singularidade. É preciso que ele apresente um caráter original e uma atipicidade[15]. Uma clínica que vai além de apenas decifrar os sentidos recalcados para se sustentar no cifrar que a letra proporciona.