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Lygia Clark
O dentro é o fora, 1963.
Crédito: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/118/o-dentro-e-o-fora

Flávia Cêra (EBP/AMP)

Agradeço à organização do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, à Comissão Científica, à Ana Tereza e Mirmila, por poder conversar[1] com e sobre os desdobramentos dos eixos de trabalho do tema “Corpos aprisionados pelos discursos… e seus restos”, que, desde o começo, ressoa para mim a incidência clínica e política da prática analítica. Vou por aí nos comentários aos textos.

Começo partindo do texto da Mirmila no ponto da crise do binarismo. A crise da diferença sexual como erro comum, que designava homem ou mulher a partir do sexo biológico, o ideal universalizante que aprisiona os corpos, de que Lacan falava também no Seminário 19. Esse ideal universal passou a ser mais facilmente questionável e vem sendo feito de várias formas, desde a criação de discursos que vão dando sustentação à circulação dos corpos que escapam à norma a intervenções nos corpos que podem ou não estar inseridas em um discurso. De todo modo, parece-me que as soluções para os impasses desta crise são pelas suturas. Estas, por sua vez, fazem as vezes de agarrar os corpos em discursos, oferecem identificações ou identidades para que a exclusão, a violência, o desaparecimento não sejam os únicos destinos. Eventualmente, mas não necessariamente, ordena o gozo e o corpo. A questão é que, muitas vezes, toma-se a partir daí uma série de determinações que tornam a aprisionar um gozo que não se domina.

Parece-me que é por isso que Mirmila aponta, já de saída no seu texto, para o hiato, depois para o descompasso, para a indeterminação do programa de gozo que não atribui roteiro para ele conforme o sexo biológico, para a inexistência da relação sexual que também abre o texto da Ana Tereza. Mirmila aponta para a falha estruturante entre corpo e discurso não importa a estrutura e são esses pontos que interessam na experiência analítica, é isso, diz Mirmila, que faz a psicanálise existir. Essa passagem da vacilação das certezas, das determinações, é sempre um ponto muito vivo na clínica e Mirmila coloca isso a partir de uma posição: “avalizar a enunciação do sujeito, questionando o efeito da estrutura do discurso. Já que o que se fala não é o sentido, a verdade ou o enredo, ocupar a função de analista é instalar no corpo, como semblante, aquilo que fala, dando lugar ao que o sujeito inventou para ocupar a impossibilidade de escrever a relação sexual”. Gostaria que você falasse um pouco mais desse duplo movimento: avalizar a enunciação e questionar o efeito da estrutura. Achei muito interessante até porque introduz aí uma diferença entre a narrativa e a fala na sessão, ao mesmo tempo em que aponta para o lugar da interpretação.

Outra questão é no plano da escolha e da ideia de que o corpo é só construção em relação aos discursos. É verdade que para a psicanálise também há a incidência desses dois fatores na sexuação, mas para ela há um furo no saber, o que torna o ser uma indeterminação que, quando o pai evapora, se evidencia e, ao que parece, fica mais difícil de suportar no corpo, ou de encontrar algum suporte no corpo. “Há Um” das marcas no corpo, das marcas da língua, outra cena que resta e insiste, essa é a nossa aposta. Esse é o real da sexuação? Esse real, esse impossível da sexuação pela ausência da significância, é o que aprisiona o corpo ou o que resta impossível de aprisionar?

Gostaria de falar um pouco sobre a lógica feminina trazida por Mirmila. Ela se dá ali onde a relação turvada com o ser remete à opacidade do gozo apresentando a inconstância entre corpo e discurso. Como pensar a relação com o dizer, questão trazida também por Ana Tereza? Mirmila traz os desafios que temos diante das certezas das identidades e da fixidez do gozo. Parece-me que é aí que a lógica feminina pensada por Lacan, que o Um da diferença absoluta diz mais de perto sobre os “despoderes”[2] da psicanálise, sobre o que Lacan dizia do discurso analítico como o que não domina, porque isso que não se captura todo pelo significante é o que que torna um sujeito inapreensível na totalidade da representação e inassimilável totalmente pelas categorias que aprisionam.

O texto da Ana Tereza vai tocar aí pelo ingovernável do gozo, daquilo que não se deixa dominar. Chamamos de impossível, dizemos que é o que escapa, o que irrompe, o que acontece. Então, uma pergunta seria: qual a diferença, se ela existe, entre o resto que se produz entre corpos e discursos (e que está no título Encontro) e o fora do discurso? Ana Tereza traz uma precisão importante: nossa ação, a da psicanálise é pela palavra. Então, o fora do discurso não está fora da linguagem, ele está fora do sentido, mas não fora da palavra. O que não quer dizer que haja um discurso pronto para que o gozo se aloje no corpo. Tomar, então, na dimensão do acontecimento, como Miller propõe a interpretação[3], é uma via para que o fora do discurso se arranje com um dizer que pode, na superfície do corpo, inscrever um impossível que incida no campo dos possíveis. Ou ainda, a inscrição de algo novo que possa incidir no campo dos discursos estabelecidos. Então, se a psicanálise opera pelo “que nos corpos não é tomado pelo discurso”[4], a interpretação e o discurso do analista partem do que está fora do discurso para produzir “uma nova relação com os significantes-mestres que outrora o petrificaram?” Nesse sentido, poderíamos pensar que o que está fora do discurso é o que interpreta o que está aprisionado?

Um ponto interessante de diferenciação proposto por Ana Tereza é o fora do discurso e o fora do corpo. O corpo fora do discurso não é o mesmo que o gozo fora do corpo. Aquele está desenlaçado do significante e este embaraçado com um significante. Ambos, entretanto, apontam para um mesmo lugar, para a relação do corpo com a fala e ambos estão fora do discurso. As irrupções de gozo mostram o imprevisto que acontece ao corpo, mesmo que fora do corpo, e que ele não é um suporte natural capaz de alojar esses acontecimentos. Nesse sentido, pensar o dizer do analista, o corte e a interpretação, pode nos dar a pista de que o fora do discurso é, ele mesmo, a orientação no tratamento do gozo. Quando um acontecimento de corpo, uma irrupção de gozo sem sentido invade o corpo, como o dizer do analista pode localizar e participar dessa nova escrita do gozo? Inserir em um discurso? Isso seria, talvez, dominá-lo. Então, a partir do discurso analítico, quais os manejos para o fora do discurso? O exemplo do garotinho é fantástico: para alojar o gozo que não cabe no corpo nem na língua, que não corresponde ao seu sexo, é preciso fazer o corpo todo crescer com as palavras e sob o olhar o Outro, como assinalou Ana Tereza.

Por fim, uma breve conversa sobre o laço, a subjetividade da época e a coletividade interrogado pelas colegas. É interessante retomar a dimensão diferente de laço que Lacan propunha com o discurso analítico, a saber, um “laço social purgado de qualquer necessidade de grupo”[5] como ele diz em “O aturdito”, ali onde Lacan mobiliza justamente as identificações que Laurent nomeia mais tarde como des-segregativas[6]. Então, se por um lado, o discurso analítico mobiliza a lógica do não-todo, da opacidade, do singular, por outro, ele quer engendrar uma lógica coletiva do laço social que, a meu ver, já aparece no texto sobre o tempo lógico de 1945. Ali Lacan está tratando assimilação dos corpos pela asserção antecipatória de quem sabe e diz o que é não é um homem, ou seja, o que está fora, portanto, do discurso, do laço. Estaria aí uma protoversão do Discurso do Mestre?[7] Nesse ponto, Lacan retoma de Freud a relação entre individual e coletivo trazido também por Ana Tereza. É uma formulação conhecida e trabalhada por Éric Laurent no seu texto “Racismo 2.0” e que talvez converse com o futuro que não será cor-de-rosa, mas de racismo como apontado por Lacan no Seminário 19.

Uma coisa que é importante esclarecer é que a experiência analítica não visa tirar as pessoas de seus movimentos sociais, de suas lutas políticas, isso seria ter uma visão de mundo. A diferença absoluta, trabalhada por Mirmila, o que visa se obter em uma análise, não toma assento em um isolamento encastelado, ao contrário, ela inaugura uma nova forma de passar pelo Outro, um novo laço. A psicanálise, poderíamos dizer, não coloca em questão traumas como experiências coletivas, o racismo, o sexismo, por exemplo[8]. Ela quer saber como esses acontecimentos, como esses discursos incidiram no corpo e na vida de cada sujeito disposto a querer saber do seu sintoma, ou seja, como esses acontecimentos fizeram questão. Então, desse modo, um “dizer” nunca será só um Eu digo, um dito. Um dizer em análise, então, seria possível quando incluir uma indeterminação pulsional, que traz consigo um ponto sempre aberto que chamamos de opacidade, de fora do discurso, produzindo um acontecimento do dizer, como pontuava Lacan[9]? Por fim, poderíamos pensar que o discurso analítico seria uma forma de laço social que, por incluir um furo no saber, mantém vivo o questionamento dos universais que pretendem definir quem está dentro ou fora e que se estabilizam aprisionando os corpos em variadas formas de segregação?


[1] Texto apresentado na segunda atividade preparatória do XXV EBCF, no Centro Sócio Econômico (CSE) da UFSC, em Florianópolis, no dia 17 de agosto de 2024.

[2] Cf. texto de Macêdo, L. Despoderes. Revista Cythère. Revista da Rede Universitária Americana (RUA), n.4. Outubro de 2021. Disponível em: https://fapol.org/cythere/cythere-4/

[3] Miller, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. Disponível em: https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9.

[4] Argumento do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.

[5] Lacan, J. O aturdito (1972). In: Lacan, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 475.

[6] Laurent, É. Política do passe e identificação dessegregativa. Opção Lacaniana, n. 82. São Paulo: Eolia, 2020.

[7] Refiro-me a esta passagem de Lacan já tão conhecida e trabalhada entre nós. Destaco seu importante contexto deste texto que foi publicado no fim da II Guerra Mundial, em 1945. Portanto, os campos de extermínio estão presentes nessa formulação de Lacan: “1) Um homem sabe o que não é um homem; 2) Os homens se reconhecem entre si como sendo homens; 3) Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem. Movimento que fornece a forma lógica de toda assimilação ‘humana’, precisamente na medida em que ela se coloca como assimiladora de uma barbárie e, no entanto, reserva a determinação essencial do [eu] …”. Lacan, J. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada (1945). In: Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 213.

[8] “O traumatismo pode se apresentar como uma experiência coletiva. Mas sua inscrição sobre a carne de cada um se fará, sempre, no singular.”. Cf. Leguil, C. Ilusão do nós, verdade do Eu (Je): abordagem lacaniana da identidade. Opção Lacaniana on-line, n. 22, março de 2017. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_22/Ilusao_do_nos_verdade_do_eu_(je).pdf

[9] Lacan, J. O Seminário, livro 21, os não-tolos erram. Aula de 15 de janeiro de 1974. Inédito.

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