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Na atualidade o que dizer sobre o Imaginário?

Renata Lucindo Ferreira Mendonça (EBP/AMP)

A partir do que escutamos em nossa clínica na atualidade, gostaria de fazer uma pequena provocação, uma convocação ao trabalho em um ponto que nos concerne e vem nos instigando: a segregação a partir do racismo. Esse tema já está presente em nossos trabalhos, tem um caminho longo a ser percorrido e questões a serem investigadas.

Em um texto de Jésus Santiago, ele afirma:

Enfrentar a questão do racismo constitui um dos maiores desafios para a consolidação dos impasses atuais da democracia, concebida sob a égide do princípio republicano das liberdades públicas e da tolerância ao Outro. Dentre esses impasses devo destacar que as democracias atuais lutam contra suas duas doenças internas: a tirania da maioria e a tirania das várias minorias.[1]

Podemos afirmar que, nos dias atuais, estamos marcados por vários discursos do mestre. Esse fenômeno abala o discurso universal da lógica da existência do Outro em que o universal “branco”, mas sem cor, sustentava o discurso do colonizador, decidindo quem era homem e quem não era, estabelecendo quais seriam os modos de gozo considerados civilizados. Esse discurso não é mais o único a ocupar o lugar da verdade.

Isso não quer dizer que o Discurso do Mestre não esteja presente, mas sim, que está pluralizado. O Discurso do Mestre surge, a cada vez, quando uma verdade tenta universalizar o gozo, quando um modo de gozo rechaça outro modo de gozo, destitui ou tenta normatizar o gozo do Outro.

Sendo assim, como ler as questões imaginárias dos corpos, as questões que implicam a segregação e o racismo de um modo que inclua os corpos pretos e questione a universalidade branca ainda existente?

Precisamos localizar como cada sujeito adere ou não ao caldo cultural presente em nossa época. Precisamos nos perguntar sobre os laços sociais regidos pelo saber do discurso capitalista com o discurso da ciência e sobre o discurso racista e suas estratégias ligadas ao discurso capitalista.

Assim, localizando esses pontos, lendo como o sujeito adere à cultura, como ele faz laço na atualidade, é possível ler o momento em que a identificação imaginária faz a existência de um corpo vivo, como uma nomeação pode forjar um novo lugar de um corpo preto, não só social, mas também, singular. Isso implica um lugar inédito de sujeito que não é só uma alienação identitária, mas um modo de se perguntar sobre o seu inconsciente, sua história, sua existência e a constituição de seu Eu. O Eu como essa representação que faz laço e circula pelo mundo. A partir dessa nova leitura de si e do mundo – “sou preto”, “isso é racismo” –, um sujeito pode estar entre os outros de outra forma, se posicionar no mundo de uma nova maneira.

Ao pensar na experiência de análise de um sujeito com um analista avisado do racismo estrutural, separado da “tirania da maioria” – que lemos aqui como “branca” colonizadora –, podemos apostar em um lugar inédito, uma nomeação que pode separar esse sujeito da tirania do Outro, seja o discurso da “tirania da maioria”, seja o da “tirania das minorias”, e permitir que ele caminhe com seu corpo e sua singularidade.

Tomo essas questões como importantes, pois temos um eixo de trabalho que levanta perguntas sobre o mundo regido pelas imagens e o lugar do imaginário. O Imaginário que cabe à psicanálise é aquele que faz parte do inconsciente, da constituição do sujeito e de seu Eu.

O Eu é uma instância do imaginário, é a imagem especular. Sua transformação e constituição se dão no caldo cultural no qual tanto a criança quanto o Outro materno estão mergulhados, onde o romance familiar se constitui. O Imaginário é um dos barbantes que compõem o nó borromeano junto com o Real e o Simbólico, fazendo uma função que não se trata mais de uma hierarquia entre esses três registros.

Esse novo lugar do Imaginário não é só especular, não propõe, por exemplo, uma leitura do fenótipo, não é uma questão de pele. Algo do Imaginário também se refere ao para-além do especular, do identitarismo ou do Eu, podendo ser mais alguma coisa, uma questão de corpo, de ter um corpo. Com isso, o psicanalista precisa ler o Imaginário para além da lógica especular, podendo ir além da desidentificação.

Ao pensar no Imaginário para além do especular, poderíamos nos perguntar: o que resta a ser lido em relação a um corpo que tem cor e que vive sob os discursos que sabem disso? O Discurso do Mestre, o discurso capitalista e o Discurso Universitário, por exemplo.

O Discurso do Mestre como o universal “branco” e “colonial”. O discurso capitalista que, em parceria com a ciência e com o discurso racista, usa esse corpo. E o Discurso Universitário que, na atualidade, quer ter um saber sobre ele.

Em relação ao Discurso do Mestre, o argumento do Encontro cita Lacan que nos avisa: “No discurso do mestre, vocês, como corpos, estão petrificados”[2]. Assim, aprisionados.

A partir da citação acima, talvez possamos pensar que o Discurso do Mestre, universal ou pluralizado (como acontece no contemporâneo), petrifica os corpos e que o Discurso do Analista talvez seja aquele que, a partir de uma análise, possa fazer uma torção e, assim, permitir ao sujeito fazer outra coisa com o seu corpo, podendo tê-lo, mas não aprisionado, podendo estar desgarrado do Discurso do Mestre e mais próximo de sua singularidade.

Com esses marcadores acima, destaco um ponto de trabalho sobre o primeiro Eixo: “quando o imaginário faz obstáculo à entrada em análise”.

Desse modo, podemos nos perguntar: em que momento o imaginário faz obstáculo à entrada em análise? Esse obstáculo viria do candidato a uma análise ou viria do analista? O analisando estaria agarrado à “tirania das minorias”, a um Discurso do Mestre pluralizado ou o analista estaria preso à “tirania da maioria”, ao Discurso do Mestre universal marcado pelo mestre colonizador?

A que se referem as identificações imaginárias? Quando elas se tornam uma solução possível? Quando elas fazem função e como atravessá-las?

A partir dessas perguntas, outros pontos nos instigam: é possível atravessar as identificações na atualidade? A cor da pele seria um obstáculo? E de qual lado está esse obstáculo? É possível reler o corpo e dar outro lugar para o imaginário que não seja aprisionado pelo Discurso do Mestre? Quais seriam os restos do imaginário no fim de uma experiência de análise?


Referências:

Castro, H., Vieira, M. A. et al. “Acontecimentos políticos de corpo: o analista e a segregação”. In: Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. São Paulo: EBP, n. 90, abril 2023, p. 75-108.

Cunha, L. F., Gorky, G., Groisman, A. T., Maia, R., Mandil, R., Musse, M., Scofield, L., Veras, M. “Os corpos aprisionados pelo discurso …e seus restos”. Argumento do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano 2024. Disponível em: https://encontrobrasileiroebp2024.com.br/index.php/o-encontro/argumento/

Iannini, G. “Interseccionalidades entre sexo, raça e classe na Viena freudiana, 100 anos depois”. In: Freud no século XXI: Volume I: O que é psicanálise? Belo Horizonte: Autêntica, 2024, p. 115-128.

Santiago, J. “Racismo: apenas existem raças de discurso”. In: Revista Derivas analíticas: Revista Digital de Psicanálise e Cultura da Escola Brasileira de Psicanálise – MG. Disponível em: https://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/racismo-discursos


[1] Santiago, J. “Racismo: apenas existem raças de discurso”. In: Revista Derivas analíticas: Revista Digital de Psicanálise e Cultura da Escola Brasileira de Psicanálise – MG. Disponível em: https://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/racismo-discursos

[2] Lacan, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 220.

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