Renata Lucindo Ferreira Mendonça (EBP/AMP) A partir do que escutamos em nossa clínica na atualidade,…
Arte e Cultura
O Brasil e seus corpos falantes
Valéria Beatriz Araújo
Comissão de arte e cultura XXV EBCF
Flor do Lácio, Sambódromo Lusamérica, latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
(Caetano Veloso)
Caetano Galindo, escritor, tradutor, professor de história da língua portuguesa na UFPR e “palpiteiro e provedor de serviços textuais aleatórios”, como ele próprio diz, é o convidado para o espaço de intercâmbio desta edição do boletim Coda. Autor de Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português, uma das referências propostas pela comissão de arte e cultura, é também citado por Niraldo de Oliveira Santos em seu texto de apresentação do XXV EBCF, de onde extraímos a questão a respeito do que poderíamos chamar um tipo particular de bilinguismo em relação à língua portuguesa falada no Brasil.
Um português brasileiro? Um brasileirês? Um pretoguês?
Nesse livro incontornável, Caetano Galindo passeia pela construção e pela diversidade dos usos da língua falada no Brasil, destacando a marca profundamente racializada e segregativa da clivagem do que seriam duas línguas portuguesas, incluindo, de forma efetiva, esse Brasileiro indígena e africano. “Todo um Atlântico de diferenças”[1], como ele aponta. Uma dessas vias destaca a ruptura sistemática imposta pelo discurso dominante do colonizador à comunicação dos escravizados, o que pode ter ampliado seu impacto na nossa língua. Cito alguns fragmentos do livro que apresentam essa questão:
(…) sabe-se, porém, que era prática recorrente misturar escravizados de origens e culturas diferentes para dificultar sua comunicação nas senzalas e nas cidades e diminuir seu potencial de organização e rebelião.[2]
No entanto, é igualmente possível supor que essa ruptura sistemática imposta à comunicação dos escravizados possa ter, na verdade, ampliado seu impacto na nossa língua de todo dia.[3]
O que certamente dificultou à linguística do século XX lidar com o mapa das famílias de línguas da África é o fato de ter havido no continente, ao que tudo indica, uma prevalência bem maior de relações “transversais” entre idiomas, ou seja, situações em que línguas geneticamente não relacionadas, mas que convivem ou passam a conviver num mesmo ambiente, acabam trocando características gramaticais. Não apenas palavras – como vimos, elas são mercadoria barata -, mas traços estruturais do idioma.[4]
Ou seja, tal processo deixa uma marca, um “produto” que escapa à norma e ao discurso que aprisiona os corpos, ampliando uma língua a partir de múltiplas versões. Como ruptura, como resto que não cabe neste aprisionamento. Como deglutição e destilação. Como subversão. Para sobreviver. Para continuar em cena.
A mudança linguística, inexorável, também pode ser uma curiosa lição de democracia. “O que quer, o que pode essa língua?[5]
Em suma, o retrato mais fiel da variabilidade das línguas é que, no limite, cada pessoa fala uma versão singular do idioma, aquilo que em linguística se chama de idioleto, o idioma de apenas um usuário.[6]
Se “língua nenhuma, em nenhum momento, jamais esteve pronta”[7], como bem diz o autor, essa aprendizagem viva e imperfeita, esses restos que escapam ao discurso articulam-se com os corpos aprisionados, tema de nosso encontro.
Endereçamos a Caetano uma questão, para seguirmos conversando:
Como podemos pensar os usos da língua, à boa maneira, sem eliminar as diferenças?
Segue o vídeo com os seus comentários, a partir dessas instigações.
Saravá!
Seja bem-vindo, Caetano!
Vídeo Caetano:
[1] Galindo, C. Latim em pó. Um passeio pela formação do nosso português. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 139.
[2] Idem, p. 166.
[3] Idem, p. 172.
[4] Idem, p. 167.
[5] Idem, p. 66.
[6] Idem, p. 70.
[7] Idem, p. 195.