Luiz Fernando Carrijo da Cunha (AME da EBP/AMP)
Coordenador da Comissão Científica
Partamos da afirmação de Lacan de que o corpo é suporte do discurso[1], não forçosamente um corpo, mas, ao implicar o gozo, esse corpo não está inteiramente só, há um outro corpo. Trata-se, pois, do “gozo corpo a corpo”[2]. Entrevemos, nessa afirmação, a presença já marcante do imaginário dando suporte a um gozo, por excelência não localizável. Se é através do discurso que um sujeito pode ser localizado, isso não implica a localização do gozo.
Um suporte, portanto, que é inaugurado em sua configuração narcísica através da imagem do outro. O corpo, assim, imerso no imaginário, torna-se matriz da relação do sujeito com o mundo, onde a incidência da linguagem trará seus efeitos de perturbação sobre a “jubilação” instalada com o imaginário. O júbilo em si mesmo, não deixa de ter uma inscrição direta com o gozo, ou seja, que o sujeito goza “de sua relação com a imagem especular”[3]. No primeiro tempo de seu ensino, Lacan associa o imaginário à inércia, fazendo deste um obstáculo a ultrapassar para alcançar a primazia do simbólico. O especular dizendo respeito, exclusivamente, ao narcisismo. Logo, segundo a leitura feita por Miller[4], inicialmente o imaginário fora degradado por Lacan. Será no seu último ensino que o imaginário será equivalente ao simbólico e ao real no encadeamento borromeano que Lacan proporá utilizando-se dos três registros. Se no primeiro tempo o corpo no imaginário ganhava seu estatuto apenas pela relação especular, ou seja, o corpo como uma forma, num segundo tempo, vemos surgir o corpo libidinal que, além da forma, é distinto do organismo. Miller destaca ainda que “desde o início do ensino de Lacan, o corpo é imaginário. Por fim, no momento de seu último ensino, Lacan formulará que o imaginário é o corpo”[5]. Uma nuance que podemos ler como do imaginário do corpo ao corpo é o imaginário. Tal nuance nos interessará no nível de nosso XXV EBCF e mais particularmente nas Jornadas clínicas, quando a privilegiamos nesse eixo 1. Ou seja, que as capturas imaginárias não se atêm à inércia e ao subjugamento destas ao simbólico, mas como tendo uma relação muito direta com o real do gozo que, verdadeiramente, é a prisão do corpo. Nessa perspectiva, o imaginário participa igualmente da constituição do sintoma, assim como dá suporte ao discurso. Nesse sentido, cabe destacar as parcerias sintomáticas que encontramos na clínica, abastecidos com o tecido imaginário; uma clínica caracterizada pela inexistência do Outro que, para além dos comitês de ética que daí se depreendem, o sujeito busca soluções mais singulares no recurso imaginário. Como bem salienta Éric Laurent, no mundo onde a biopolítica está no posto de comando, “o corpo-máquina, assim, faz par com o corpo-imagem”[6]. Essa e outras parcerias poderão ser exploradas nos casos clínicos que se inscreverão neste eixo.
Ainda com Laurent, em relação à análise do falasser, “a ênfase incide sobre a urgência de redefinir as relações mantidas pelo sujeito e o corpo, ambos tomados pelos discursos invasivos sobre a necessidade de colocar-se à escuta de seu corpo”[7]. A perspectiva que se coloca não pode negligenciar os imperativos contemporâneos que passam a determinar a forma ideal do corpo, assim como seu funcionamento respondendo ao ideal de saúde e beleza. Nesses imperativos encontraremos consequências clínicas as mais variadas, desde as anorexias até sintomas graves de dismorfismo corporal, além das queixas hipocondríacas que não se restringem ao sujeito psicótico.
Lacan, em sua retomada do ensino de Freud, inicialmente seguiu sua via a partir das identificações imaginárias, destacando a força e o poder da imagem. Porém, dadas as transformações vividas em nossa época, é necessário “repensar o status do imaginário em Lacan, tanto em nossa elaboração da clínica quanto na prática analítica”[8], destaca Miller. Como vimos, Lacan prossegue na lógica de seu ensino que vai do corpo como forma, acrescentando que o corpo é o imaginário. Sublinhemos ainda a alta incidência de sujeitos que buscam uma análise fixados em suas identificações, quer seja por simpatizarem e/ou militarem em grupos identificatórios, quer seja por estarem fixados numa determinada lembrança encobridora, cujos significantes não se mobilizam. Não nos esqueçamos que Freud elaborou a noção de fantasma assentado sobre a imagem.
Salientemos que nessa investigação onde “o corpo é o imaginário” é necessário levar em consideração as formas de laço social que se depreendem de uma “nova psicologia das massas”, caracterizada fundamentalmente pelo individualismo de massa e pelos comitês de ética onde, justamente por implicar o corpo, a biopolítica ganha o proscênio. Ademais, no seio desse novo laço social, encontramos a proliferação de religiões e imposições no comportamento e até mesmo na língua. O recrudescimento das segregações de todo tipo, especialmente aquelas que se enraízam no corpo[9] a partir do ódio, é a resultante da constituição de um discurso do mestre para além do mestre da tradição: os discursos do capitalismo (com o neoliberalismo como frontispício) e das tecno e biociências. Nessa perspectiva, o lugar do sujeito fica foracluído, trazendo como uma das consequências, a posição da “vítima” como um dos significantes mestres da época[10].
Como vimos, a insuflação do imaginário em nossa época propicia ainda mais o aprisionamento do corpo e, como o gozo está aí implicado, deduzimos a ação de um real sem lei e, por isso mesmo, causador de sintomas.
A consistência que o imaginário dá ao corpo, ao corpo como forma, pode demonstrar seu limite na prática psicanalítica quando testemunhamos o fracasso do imaginário em sustentar o ideal de um corpo higienizado do gozo. A passagem do “ser um corpo” para o “ter um corpo” é fundamental para se abordar o que há de gozo que transborda em qualquer perspectiva higienista, assim como em qualquer perspectiva identificatória.
A perspectiva que se coloca quanto ao fim do binarismo sexual não apaga a singularidade do gozo. Como pudemos escrever em outro lugar, “a cada um seu sexo”, representando nesse a cada um, sua singularidade sintomática, independentemente das identificações em jogo.
Como sublinhamos no argumento desse eixo, reforçamos aqui que o corpo escapa a qualquer identificação totalizante, há sempre algo que permanece fora da imagem corporal, um resto inapreensível e irrepresentável. Resta um corpo infamiliar que a imagem não consegue capturar, um gozo que não se inscreve e faz obstáculo a essa diluição do ser falante na confusão imaginária.
O “corpo é o imaginário” quer dizer que ele, mais do que “forma”, é o suporte de um discurso que pode aprisioná-lo e que, na perspectiva da análise, tal aprisionamento pode se demonstrar como falácia quando, daí, surge o resto de gozo do qual o corpo não pode ser liberado, ou seja, a verdadeira prisão do corpo é o gozo. As manifestações sintomáticas desse aprisionamento referendado, por assim dizer, pela consistência imaginária, são matéria para se pensar a atualidade da clínica, assim como os impasses daí decorrentes, implicando a transferência, a interpretação e o ato analítico.
Esperamos, em nossas Jornadas clínicas, especificamente casos e fragmentos clínicos que possam demonstrar, não apenas as soluções, mas, fundamentalmente, os impasses que aí se colocam.