A Comissão de Referências Bibliográficas vem selecionando diversas passagens extraídas de livros e artigos orientadores para as pesquisas em torno do tema do XXV EBCF: Corpos aprisionados pelo discurso …e seus restos.
Algumas dessas passagens, comentadas por colegas que gentilmente toparam o desafio de avançar um pouco mais ou de nos provocar com novas questões, serão publicadas nos boletins .
Lacan fazia uso de seu corpo como um instrumento de sua prática. Sua presença era a de um analista encarnado e a partida psicanalítica se jogava em um corpo a corpo.[1]
Análise: uma experiência de corpo
Andréa Reis Santos (EBP/AMP)
Este fragmento do texto de Esthela Solano-Soarez em “Hagan como yo, no me imiten” consegue condensar uma parte do que foi para ela a densidade da presença de Lacan na função de seu analista. O título escolhido por ela – retirado de uma fala do próprio Lacan dirigida a seus alunos –, “não me imitem, façam como eu”, já nos indica que nessa presença o que está em jogo é um estilo único, intransferível, que não se presta a servir de modelo ou objeto de identificação. Já o primeiro tempo da frase: “façam como eu”, nos indica que há uma orientação. Uma orientação não para o semelhante, mas para o singular. Que cada um se oriente pelo produto da própria análise, para poder, com isso, se colocar na posição de operar a partir do mais singular. Que cada um opere a partir daquilo que circunscreve o inimitável das marcas que desenham um estilo, de modo a emprestar o corpo para ser o suporte de uma presença a serviço do ato. Trata-se de algo que Esthela chama de operar a título de sinthome.
Colocar o corpo a serviço do ato: essa frase merece uma pausa. Corpo e ato ganham um lugar todo especial no último ensino de Lacan com uma ética menos ligada ao desejo, ao Outro, ao campo da linguagem; e mais ligada a um certo saber fazer com o gozo, ao que se passa no campo do Um sozinho. O Outro que não existe cede espaço ao corpo, que passa a entrar com tudo na jogada.
Tanto nesse pequeno texto, quanto no maravilhoso livro Tres segundos con Lacan[2], que esse texto resume, Esthela consegue descrever o papel do “corpo a corpo” na experiência da análise, algo que é muito difícil de colocar em palavras. Por um lado, os efeitos do ato do analista, produzindo ressonâncias no corpo da analisante, e por outro, aquilo que ela chama de analista encarnado. Para isso, recorre a muitas cenas em que o corpo de Lacan esteve presente em ação: os gestos, alguns toques, o uso do olhar ou a ausência dele, as variações no tom de voz, desde o fundo silencioso de uma presença até um chamado dirigido por ele aos gritos da janela, para ela, já de saída, atravessando o pátio. A descrição que ela faz é tão nítida, tão verdadeira, que é quase possível sentir, ali ao lado, a presença imponente de Lacan, radicalmente oposta à ideia do analista inerte e meio mortificado de um certo imaginário popular. O mais importante a destacar daí são os cortes que produzem efeitos de ato, que traumatizam o automaton universal, e rompem com qualquer tipo de pacto imaginário. São atos que não se fazem sem o corpo presente como suporte de uma boa dose de estranhamento.
No último ensino, o modelo do ato analítico passa a ser o corte. Lacan o afirma textualmente: “…pois bem, ao final, tudo o que resta é o próprio corte”[3]. E Miller acrescenta: “Elevar a debilidade psicanalítica à segurança soberana do gesto cirúrgico de cortar, essa seria a salvaguarda da psicanálise”[4].
Esthela descreve a entrada em análise com Lacan através do encontro desconcertante com um analista que a privava radicalmente do blábláblá explicativo, das racionalizações, das histórias que cada um se conta, deixando-a perplexa, atravessada pelo que ressoava no corpo de uma sonoridade que não era agarrada por um efeito de sentido. O analista rompia toda e qualquer rotina e cada sessão era diferente e única. Nas suas palavras: “em sua prática colocava em ato os conceitos elaborados no último ensino a ponto de fazer equivaler seu ato com o real fora de sentido, produzindo acontecimento de corpo na analisante”.
No entanto, nunca é demais lembrar que esse efeito de corte que incide no corpo não dispensa a palavra. Ela consegue descrever algumas passagens preciosas sobre o reviramento que a ressonância de um significante chave é capaz de provocar. O analista corta, não em qualquer momento, mas em um momento específico, sobre um significante chave, um significante com cara de S1, desses que aglutinam sentidos e que, quando são destacados na análise, produzem efeitos que afetam o corpo, o regime de gozo. Isso é o que nos ajuda a entender o “corpo a corpo” de que fala Esthela: a interpretação não está concernida apenas por seus efeitos de significado, mas por seus efeitos corporizados.
Miller, na aula de 25 de maio de 2011 do curso O Um sozinho, não publicado, diz que Lacan, no último período do seu ensino, trata das pulsões como o eco no corpo de que há um dizer, e que o real do sinthoma a ser alcançado na experiência da análise é a pura percussão do significante, da palavra no corpo. O texto de Esthela é o testemunho vivo daquilo que uma experiência de análise é capaz de movimentar na articulação entre a palavra e o corpo, levando em conta o enorme deslocamento que o último ensino promove. Um deslocamento que coloca o acento naquilo que da palavra faz corpo e que nos ajuda a entender que apesar de não podermos prescindir da palavra, a psicanálise é, de ponta a ponta, uma experiência de corpo.
[1] Solano-Soarez, E. “Hagan como yo, no me imiten”. In: Lacan Hispano. Barcelona: Grama, 2021, p. 173.
[2] Solano-Soarez. E. Tres segundos con Lacan. Barcelona: Gredos, 2021.
[3] Lacan, J. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 836.
[4] Miller, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 195.
Penso que a pesquisa do campo freudiano hoje está em contrariar o real engendrado no empuxo a um individualismo radical, a adições, compulsões, autogestão do gozo que curto-circuita o giro da pulsão, dispensando seu arranjo ao Outro. Trata-se de contrariar, com sua ação, o que está na contracapa do Seminário 19, …ou pior, onde Miller evoca “o pensamento radical do Um-dividualismo moderno”. A psicanálise faz obstáculo ao interpor ao desatino do gozo um outro para situá-lo. Nesse mundo onde o Outro da tecnologia faz par com o individualismo radical, a investigação, pesquisa e aposta da psicanálise está na oferta e instalação da presença do analista, que toma a forma de a, um corpo êxtimo desde onde ressoe a música da língua de cada um e situe seu cabimento na polifonia das vozes de um mundo plural e diverso. É aqui que uma resposta ao mal-estar atual não está no triunfalismo de um pensamento único, pois não há só uma resposta. A aposta no pluralismo é abrir as portas para o convívio com a pluralidade de respostas, a pluralidade dos sintomas.[5]
Analista presente!
Iordan Gurgel (AME da EBP/AMP)
Este parágrafo que comento integra uma conferência/texto de Fernanda Otoni Brisset que articula o impossível de dominar e a presença do analista que, na posição de semblante de a, oferece-se à ressonância da língua de cada um. Estamos no campo da clínica do real que promove a separação do corpo dos significantes que marcaram e parasitaram o sujeito.
Na contemporaneidade, com os fenômenos da chamada globalização – devido ao vazio deixado pela vacância do pai[1] – muitas foram as mudanças ocorridas, a partir dos movimentos sócio-políticos, que acabaram recaindo sobre as novas formas do funcionamento social com reflexos importantes na posição subjetiva de cada um. Com o avanço da biologia molecular, a prática da medicina baseada em evidências, o apelo às neurociências associado ao individualismo radical e, ao mesmo tempo, o fracasso da política frente aos ideais de saúde para todos e da religião que claudica ao tentar dar sentido sobre o real, a psicanálise é convocada a mostrar seus efeitos a partir da presença do analista. Não é tarefa simples fazer o falasser subverter os significantes que lhe aprisionam e inventar significantes novos que brotam do inconsciente real, como apontou Fernanda em seu texto.
Para tanto, a psicanálise do século XXI acompanha o “último Lacan” que provoca uma mudança conceitual que tem consequências na clínica. Trata-se da passagem do inconsciente estruturado como uma linguagem – que agora é entendido como uma elucubração do falasser, que inclui o corpo e o gozo – para o inconsciente de alíngua e a consequente afetação do corpo pela linguagem. Este giro conceitual é tributário da noção do inconsciente que procede do corpo falante – isso que Miller destrincha ao dizer que “a palavra passa pelo corpo e, de retorno, afeta o corpo que é seu emissor”[2].
É a virada da primazia do Outro da dimensão da verdade e do desejo para a primazia do Há Um – é a entrada no campo Uniano, que existe a partir da incorporação do significante Um que passa a ser parte constitutiva e integrante do corpo. Aqui, Lacan identifica duas materialidades: a sonora do significante e a física do corpo biológico, condição que nos direciona para a clínica do real. O Há Um é distinto do atributo de uma classe, portanto, não tem nada com o universal; é o Um que comanda e cria o ser,[3] que varre a ideia do dois da relação sexual, fazendo prevalecer a dimensão do real. Nesta direção, a via do Um-sozinho do gozo nos leva a questionar: Quais consequências podemos extrair desta mudança? Como intervir a partir do real e não mais se referenciar do desejo?
As nossas armas são outras para enfrentar o Outro da tecnologia – que concebe o corpo a partir do saber da biologia e da medicina que desprezam as brechas de saber que o corpo manifesta – para enfrentar o mestre que, em estrita obediência a suas ordens, faz o mundo funcionar. Este funcionamento é consequente aos discursos – excluindo-se aí o analítico – que funcionam aprisionando os corpos. O exemplo princeps é o do discurso do mestre que afeta e petrifica o corpo do sujeito.[4] A noção mesma de discurso implica a dominação porque se propõe a organizar o mundo e todos caminharem no mesmo passo, tarefa que não é própria da psicanálise, que não ignora as travessuras do real. O nosso desafio é enfrentar o real para possibilitar ao ser falante encontrar uma forma menos perturbada de se haver com seu corpo e modificar seu programa singular de gozo, que tem como efeito o sintoma.
A direção clínica que seguimos, com entusiasmo, para responder à desordem do real produzido pela ciência, principalmente pelo discurso capitalista e pela religião que fracassam ao tentar tratar o desamparo humano é orientar-se pela defesa do real sem lei e fora de sentido; é, portando, pela via do sem sentido, de privar o sintoma de sentido. É justamente por saber que o real não cessa de não se escrever e, por isso mesmo, não há um para todos iguais, tampouco um algoritmo que nos oriente na clínica, que com os instrumentos que dispomos – a interpretação, o corte e o ato – seguimos o caminho da contingência que pode levar o sujeito, ao desarticular a relação entre S1-S2, a interromper a repetição e poder inventar algo que o leve a ser mais amigo da vida.
[1] Conforme o argumento do XXV EBCF.
[2] Miller, J-A. “Habeas corpus”. In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n.73, ago. 2016, p. 31-37.
[3] Lacan, J. (1971-1972) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 214.
[4] Idem, p 220.
[5] Otoni Brisset, F. “O impossível de dominar e a presença do analista”. In: Variedades. N.3. Dez/2023. Revista do Instituto de Clínica Psicanalítica de Orientação Lacaniana de Santa Catarina. Disponível em: https://www.varidade.com.br/index.php/o-impossivel-de-dominar-e-a-presenca-do-analista#:~:text=A%20presen%C3%A7a%20do%20analista%20%C3%A9,o%20come%C3%A7o%20de%20uma%20an%C3%A1lise. Acesso em 30 de setembro de 2024.
Quando alguém me procura no meu consultório pela primeira vez e eu escando nossa entrada na história com algumas entrevistas preliminares, o importante é a confrontação de corpos. É justamente por isso partir desse encontro de corpos que este não entra mais em questão, a partir do momento em que entramos no discurso analítico.[1]
O que não se compartilha
Silvia Sato (EBP/AMP)
A tentativa de dizer algo sobre a confrontação dos corpos na cena analítica me levou à experiência no teatro enquanto expectadora. Seja o teatro dos grandes cenários e figurinos, que montam a personagem para a representação da cena, onde os atores frente a frente ou corpo a corpo dão voz aos personagens, seja o teatro onde a atriz se aproxima do público e contracena com ele. Foi assim em “Eu de você”, peça interpretada por Denise Fraga onde em determinado momento o corpo a corpo é feito num improviso calculado com alguém da plateia.
Segundo Denise, com as palavras de Simone de Beauvoir, “os artistas compartilham essas experiências para que o público reconheça nos sofrimentos individuais, o consolo da fraternidade”.
Será que podemos dizer que na experiência analítica haveria um consolo da fraternidade nessa irmandade, já que “somos filhos do discurso”[2], como disse Lacan?
Talvez seja um dos sentidos que podemos dar para a importância da confrontação dos corpos nas entrevistas preliminares, onde estariam analisando e analista numa submissão dos corpos a algo comum, à entrada nessa fraternidade que não se dá para todos, já que demanda um consentimento do analisando, uma abertura ao inconsciente e inscreve uma perda.
Nesse primeiro confronto dos corpos, os dados são jogados, os lugares estabelecidos dentro do tabuleiro discursivo que tem como peça fundamental a fala, o dito e o dizer.
Nesse cenário, o corpo vivo de cada um, analisando e analista, é o suporte[3], como disse Lacan. O corpo é o suporte e, dessa confrontação dos corpos, abre-se uma fronteira entre o que seria da ordem do eu e do outro, para o que se presentifica sob transferência, do sujeito e do Outro, incluindo um impossível da relação sexual presentificado na separação dos corpos.
Assim, a psicanálise enquanto um laço social se distingue da arte, ao menos ao modo como disse Simone de Beauvoir, citada por Denise Fraga: “a arte serve para superar a solidão comum a cada um de nós e que, no entanto, faz com que nos tornemos estranhos uns aos outros”.
Então, haveria uma diferença entre a arte e a psicanálise no modo como afetam a solidão, já que numa análise não se trata do compartilhamento das experiências, mas sim que em cada experiência analítica, desde a confrontação dos corpos com a delimitação das fronteiras entre analista e analisando, visa-se tocar no real dessa solidão singular a cada um, tocar no modo de gozo que não se compartilha.
Diferente do teatro, o corpo não é meio de representação, mesmo que sirva à cena numa análise, onde se atualiza a realidade sexual do inconsciente[4] pela fala endereçada ao analista. O corpo muda seu estatuto, indo além da imagem de si, articulando-se ao ser, podendo assim, como efeito dessa parceria sintomática, dar corpo ao ser.
Ao dar corpo ao ser, ao entrar numa outra cena onde se inclui aquilo que lhe é desconhecido e estranho, ou inconsciente, como podemos dizer, um corpo falante pode então prescindir do corpo a corpo e se deitar no divã.
[1] Lacan, J. (1971-72). O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 220.
[2] Idem, p.226.
[3] Idem, p. 217.
[4] Lacan, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.147.
Chegamos enfim ao nível do discurso do analista. Naturalmente, ninguém assinalou – é muito curioso que o que ele produz nada mais seja do que o discurso do mestre, já que S1 é o que vem no lugar da produção. E, como eu dizia a última vez, quando deixei Vincennes, talvez seja do discurso do analista, se fizermos esses três quartos de giro, que possa surgir um outro estilo de significante-mestre.[1]
Somos filhos do discurso
Nancy Greca Carneiro (EBP/AMP)
No penúltimo capítulo do Seminário “O Avesso da Psicanálise”, Lacan se refere ao discurso analítico lançando a questão que lemos na citação acima. E responde a sua questão com a pergunta: “Será que acentuo o bastante a relevância da impossibilidade de sua posição, na medida em que o analista se coloca em posição de representar, de ser o agente, a causa de desejo?”[2]
Neste Seminário, apresenta-se o gozo em sua forma discursiva, como o que não é nomeável; e é na sua interdição que se fundam estas estruturas.
Estamos, justamente, na aula intitulada por Miller de “A impotência da Verdade”, onde Lacan inicia por destacar, como marca de seu ensino, o convite ao analista de “estar à altura de uma experiência”[3]. E com “duas pontinhas de futuro” destaca o essencial do que transmitirá neste momento: os poderes dos impossíveis e a impotência da verdade.
Lacan enfatiza que um discurso não poderá estabelecer uma relação daquilo que cai como sua produção com a verdade, pois esta está protegida pela impotência. O real, como impossível, introduz nos discursos uma mutação: nada de verdade. Ao fracasso de cada discurso – governar, fazer desejar, analisar e ensinar –, propõe que, ao assumir seu impossível, nos livramos da impotência, nos protegemos da estupidez.
Ao mesmo tempo que articula o discurso da Universidade como um novo discurso do mestre, Lacan anuncia que a junção entre o mais-de-gozar e a verdade do mestre, promovida pelo discurso capitalista, esvazia o discurso da impotência e promove a demissão da verdade.
Se no Seminário 17, Lacan responde aos estudantes que “estão procurando um novo mestre”, no Seminário 19, ele aponta a emergência do discurso analítico como sendo aquilo que talvez traga “o germe de alguma revolução possível”[4], e apresenta o campo Uniano – o que tende a aglutinar – como não mais centrado no Outro, mas como algo que não é passível de inscrição, o que ele apresenta como “Há um” [Yad’lun].
Lacan afirma que o que Platão procedeu foi afirmar que a relação senhor-escravo não tinha nada a ver com a relação “essência-senhor” e “essência-escravo”, que o escravo nunca é escravo senão da essência do senhor[5]. Aqui se abre o caminho desde a ontologia à henologia, ou seja, do ser ao existir. Assim, conclui sobre o Um: o que só existe ao não ser[6].
Se no Seminário 18, Lacan suspira por um discurso que não fosse do semblante, no Seminário 19, convida os analistas a “abraçar esse impossível no qual se reúne o que é para nós, no discurso analítico, fundamentável como real”[7].
O que comanda é o Um! E como anterioridade lógica, o Um constitui o ser. Lacan afirma o gozo como um fundamento que está no corpo, inapreensível, inarticulável como verdade. Esta verdade não pode ser dita, ela não pode se dizer. Mas o gozo existe e do gozo é possível que possamos falar dele[8]. E acabará por afirmar que “o discurso como tal é sempre discurso do semblante”[9].
Gira, oscila, pode ser contornado a partir do momento em que o tocamos. E gira em torno de quê? A essência do discurso gira em torno de um corpo. O gozo, a verdade, o semblante e o mais-de-gozar giram em torno do que acontece no nível do corpo – suporte de onde surge todo o sentido.
Lacan finaliza: “se existe algo que se chame discurso analítico, é porque o analista como corpo, com toda a ambiguidade motivada por esse termo, instala o objeto a no lugar do semblante”10]. Assim, a presença do analista e de seu ato fazem ressoar em seu corpo o que é o próprio objeto a. Para tornar presente este gozo não simbolizado, o analista comparece com seu corpo. Caberá ao analisante interpretar: onde estou no meu dizer?
Para encerrar, retomo a aposta de Lacan no Seminário 17 de que “talvez seja do discurso do analista (…) que possa surgir um outro estilo de significante mestre”[11] e estendo esta presença do analista no tratamento analítico para a presença do analista no mundo.
A partir da “Proposição de 9 de outubro” – quando Lacan funda sua Escola como um lugar para que os analistas estivessem à altura de fazer existir a Psicanálise no mundo –, poderíamos pensar que é a presença do analista no mundo, um ato político? Seria a presença do analista, na cena do mundo, uma abertura possível para que se suspenda, também na vida cotidiana, nas instituições, nas cidades, a repetição própria ao inconsciente e este irrompa em sua função de interpretação?
[1] Lacan, J. (1969-70). O Seminário, livro 17: o avesso da Psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 168.
[2] Idem, p.168.
[3] Idem, p.156.
[4] Lacan, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 124.
[5] Idem, p. 127.
[6] Miller, J. A. (2010-2011) Curso da Orientação Lacaniana: O Um sozinho. Inédito. Obs: Onde Miller irá distinguir a doutrina do ser do nível da existência, onde a existência precede a essência.
[7] Lacan, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 213.
[8] Idem, p. 218.
[9] Idem, p. 218.
[10] Idem, p. 222.
[11] Lacan, J. (1969-70). O Seminário, livro 17: o avesso da Psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 168.
A consequência mais surpreendente extraída por Lacan é que “só há identificação sexuada de um lado”, e esse é o lado feminino, não-fálico: “Todas essas identificações estão do mesmo lado. Isto quer dizer que só uma mulher é capaz de fazê-las”[1]. Só uma, não todas, uma por uma, e sempre não-toda. A fórmula é fulgurante e não deixa outro lugar para a identificação sexuada, não sexual, que a posição feminina, singular, exceção sem regra, objeção de princípio à lógica fálica dos universais. Dito de outro modo: só desde a posição feminina se escolhe e se consente com uma identificação sexuada. Resta desdobrar, aqui, as consequências dessa nova lógica lacaniana da sexuação.
(Miquel Bassols “Fundamentos da sexuação em Lacan”. In: Latusa 26: binarismo em crise – gênero e sexo nos tempos que correm. Rio de Janeiro: EBP-Rio, n. 26, 2022, p. 42)
O feminino em nós
Cristiane Grillo (EBP/MG)
No livro La diferencia de los sexos no existe en el inconsciente[2], Miquel Bassols argumenta, seguindo Lacan, que há uma primeira lógica, a da diferença relativa entre os significantes, que funda a linguagem. O inconsciente é estruturado como linguagem, e o sujeito do inconsciente é representado por um significante para um outro significante. As diferenças relativas entre um significante e outro se desdobram nos binômios homem-mulher, hétero-homo, binário-não binário etc. O binarismo resultante da diferença entre os significantes estrutura a linguagem. Esta lógica universal mostra sua vertente segregativa, por mais (e quanto mais) que se tente escapar dela.
O axioma “não há relação sexual” inaugura uma nova lógica, uma vez que, aqui, não há diferença relativa entre os sexos. Passamos do campo do Um com o Outro para o campo do Um sem o Outro.
Nessa esfera de uma alteridade radical, se há um Outro, é o corpo, habitado por um gozo autista:
A não relação sexual quer dizer que não há dois. O “dois” não está no mesmo nível que há Um (il y a de l’Un), o “dois” está no nível do delírio. Não há dois, não há mais que Um que se repete na iteração. E ainda acrescentaria uma terceira fórmula: há o corpo. Nesse nível, estão em relação os dois “há” que devem ser pensados. Não são os dois sexos, e sim o Um e seu corpo.[3]
Essa nova lógica é a lógica da letra, do objeto a, do feminino. Lógica que introduz a diferença absoluta, a singularidade, uma vez que não estamos mais no campo da diferença relativa e do universal do significante.
Seguindo Lacan, vemos que “A mulher, insisto, essa que não existe, é justamente a letra – a letra como significante de que não há Outro”[4]. Passamos da lógica binária do falo para o uniano do gozo, tomando essa expressão de Laurent[5].
O rechaço à alteridade, ao feminino, pode provocar uma multiplicação de semblantes, de identidades, visando a borrar o infinito entre 0 e 1, entre centro e ausência. Aqui, vemos o abecedário dos gêneros, sempre insuficiente para se nomear o gozo opaco, o gozo sempre queer. Esse abecedário se contrapõe ao de uma letra só.
Diante do real do gozo, da inexistência da relação sexual, resta a cada um forjar uma solução sinthomática: a invenção de uma borda, de um nome singular para o gozo. A face real do objeto se escreve e o escrito tece a borda do real[6].
E, ao autorizarmos o feminino em nós, podemos nos autorizar como seres sexuados e eventualmente como analistas, não sem alguns outros.
[1] J. Lacan. (1973-1974). Le séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent, (não publicado)
[2] Bassols, M. La diferencia de los sexos no existe en el inconsciente. Olivos: Grama Ediciones, 2021.
[3] Miller, J.-A. El ser y el uno. Olivos: Grama, 2016, p. 246.
[4] Lacan, J. (1971). O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 102.
[5] Laurent, É. El unarismo lacaniano y lo múltiple de las conductas sexuales. Disponível em: https://zadigespana.com/2021/01/05/el-unarismo-lacaniano-y-lo-multiple-de-las-conductas-sexuales/ (acesso em 10/07/24).
[6] J. Lacan. (1973-1974). Le séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent, (não publicado).
Em Joyce, só há uma coisa que exige apenas sair, ser largada como uma casca. (…) Essa repulsa refere-se, em suma, a seu próprio corpo. É como alguém que coloca entre parênteses, que afasta a lembrança desagradável. Ter relação com o próprio corpo como estrangeiro, é certamente, uma possibilidade, expressada pelo fato de usarmos o verbo ter. Tem-se seu corpo, não se é ele em hipótese alguma. (…) Mas a forma de Joyce deixar cair a relação com o corpo próprio é totalmente suspeita para um analista, pois a ideia de si como um corpo tem um peso. É precisamente o que chamamos de ego.
(Lacan, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 146)
Guarde os pensamentos sobre o meu corpo para si mesmo!
#vempterapiavctb #liberte-se
Veridiana Marucio (EBP/AMP)
Essa publicidade, encontrada nas redes sociais, mostra como está difícil de nos arranjarmos com o nosso corpo hoje em dia. Já que não podemos nos libertar do corpo que temos, pelo menos podemos fazer uma terapia para nos libertarmos da pressão social de buscar o corpo perfeito. Venha para a terapia você também, não fique de fora, e liberte-se do que você pensa que o outro pensa sobre seu corpo.
Enquanto isso, o que vemos na nossa clínica psicanalítica são casos extremos dessa dificuldade: dores intensas, anorexia, bulimia, automutilação, cicatrizes, além de problemas no sistema digestivo, no sistema respiratório, no sono, nos intestinos, na bexiga e na sexualidade.
Nesse sentido, ao valorizar a pluralidade do corpo, a psicanálise se mostra essencial para entender esses fenômenos. Então, o que a psicanálise nos ensinou sobre o corpo?
Se falamos do corpo, é porque o temos, mesmo que em alguns casos isso seja tão insuportável, a ponto de querermos nos libertar dele. Lacan insiste na dimensão do “ter” ligada ao corpo. Temos um corpo, não somos o corpo. Ao que isso se refere? Ao amor-próprio, à mentalidade como consistência mental e essa, especifica Lacan[1], é a raiz do imaginário. É uma “espécie de amor primário, não pelo Outro, mas por si mesmo, um culto” [2], acrescenta Jacques-Alain Miller.
A mentalidade consiste, portanto, em adorar seu corpo, e essa é “a única relação que o falasser tem com seu corpo”[3]. Miller diz que a relação, cuja inexistência Lacan formulou no nível sexual, ele a reencontra no nível corporal e, de certa forma, Joyce nos serve de exemplo: existe uma relação corporal[4].
Essa adoração ao próprio corpo, que não passa pelo Outro do significante, é uma nova relação com o corpo. O corpo de que se trata no último ensino de Lacan é “o corpo na medida em que ele se goza”[5].
No mesmo curso, Miller acrescenta:
(…) há a relação corporal joyceana que é distinta, pois o que está no centro não é a adoração do corpo, é a ideia de si mesmo como corpo. E parece-me que seria necessário opor aí a adoração ao próprio corpo e a ‘moisação’ do próprio corpo, se posso dizer assim. A primeira relação de adoração permanece uma relação de ter, enquanto a outra é uma relação de ser.[6]
Por isso podemos falar de uma doença da mentalidade para Joyce, com esta fórmula substitutiva: ele não tem um corpo, ele é.
Uma cena de “Retrato do Artista Quando Jovem” é comentada por Lacan para elucidar a doença da mentalidade de Joyce. Trata-se da briga que surge entre Stephen e Héron, a respeito do poeta Byron. Héron e seus camaradas se jogam sobre Stephen, encurralando-o contra uma cerca de arame farpado e o espancando. Retomamos aqui essa passagem:
Enquanto ainda repetia o Confiteor em meio ao riso indulgente de seus ouvintes e enquanto as cenas daquele episódio maligno passavam ainda viva e rapidamente diante de sua mente ele se perguntava por que agora não guardava rancor (malice) contra aqueles que o haviam atormentado. Não esquecera nem um pouquinho a covardia e a crueldade deles mas a lembrança daquilo não lhe despertava nenhuma raiva. Todas as descrições de amor e ódio ferozes que encontrara em livros lhe haviam parecido por conseguinte irreais. Mesmo naquela noite enquanto tropeçava pela Jone’s Road em direção a sua casa sentira que alguma força o estava despojando daquela raiva subitamente tecida tão facilmente quanto um fruto maduro é despojado de sua casca madura e macia.[7]
Lacan extrai desse testemunho que não se trata apenas da relação com o corpo, mas que o elo imaginário se rompe para Joyce[8]. Não há adoração ao corpo, não há mentalidade. Para ele, não há mais corpo. Lacan diz que Joyce metaforiza sua relação com seu corpo: como uma casca. Ele não tem o corpo, o que indica a ausência de amor-próprio, mas ele o é pelo processo de metaforização, que Jacques-Alain Miller chama de “moisação”.
Essa perturbação da relação com o corpo para o sujeito Joyce elucida a clínica contemporânea. Finalizo esse breve comentário com uma questão, a partir do trabalho de Ram Mandil intitulado “James Joyce e a ideia de si como corpo”[9]: Onde estaria o suporte para a ideia que alguém faz de si como corpo? De que maneira podemos distinguir as ideias que se sustentam da imagem do corpo próprio, daquelas que buscam outras vias de sustentação?
[1] Lacan, J. (1975-1976). O seminário livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p.131.
[2] Miller, J.-A. “Peças avulsas – comentário sobre Le Sinthome”. In: Opção Lacaniana. N. 45. São Paulo: Edições Eólia, 2006, p.15.
[3] Lacan, J. (1975-1976). Op. cit., p. 64.
[4] Miller, J.-A. “Peças avulsas – comentário sobre Le Sinthome”. Op. cit.pg. 13
[5] Miller, J.-A. (2010-2011). O Um sozinho. Inédito.
[6] Miller, J.-A. “Peças avulsas – comentário sobre Le Sinthome”. Op. cit., pg. 14.
[7] Joyce, J. Um retrato do artista quando jovem. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 87.
[8] Lacan, J. (1975-1976). Op. cit., p. 145.
[9] Mandil, R. James Joyce e a ideia de si como corpo. XI Congresso Internacional da ABRALIC. 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil. Disponível em: https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/005/RAM_MANDIL.pdf (acesso em 21/07/2024).
No momento final de seu ensino, o imaginário define-se pela crença de que o ser falante possui um corpo – ou seja, o imaginário é o corpo que se acredita existir. Uma coisa, porém, é a crença em se ter um corpo; outra é o corpo propriamente dito. O corpo do ser falante não é o cadáver. O corpo do cadáver é consistente e não se evapora quando de sua consumação. O corpo vivo do ser falante é evanescente e inconsistente, escapa-lhe a todo o tempo.
(Santiago, J. “O novo imaginário é o corpo”. In: Derivas analíticas. Revista digital de psicanálise e cultura da EBP-MG. Belo Horizonte: EBP, março de 2024. Disponível aqui.)
O Novo Imaginário e o enodamento possível
Marcelo Magnelli (EBP/AMP)
Lacan, no início de seu ensino, reduz o Imaginário a i(a). Com a topologia do nó borromeano, Real, Simbólico e Imaginário ganham independência e perdem hierarquia entre si. Jésus Santiago[1] parte destes pontos para chegar à citação destacada. É a partir da perspectiva de que o objeto a curto-circuita a relação imaginária que Lacan “esburaca” o imaginário, chegando à noção de que o corpo que interessa à psicanálise não é o correlato à imagem narcísica, esférica e imaculada. Também não é um corpo “corpsificado” (cadaverizado) pela ação simbólica. Seu caminho vai, então, da esfera ao toro, chegando ao nó borromeano. O corpo do falasser é vivo porque dele transborda gozo e sempre escapa à imagem especular.
O Imaginário é o corpo na medida em que “é contíguo ao real do gozo”[2], sustentando a imagem por meio dos restos do real do gozo. Esta dimensão do Imaginário caminha, pari passu, à noção de corpo destacada por Jacques-Alain Miller em seu curso O Um sozinho: um corpo estrangeiro, um corpo gozante, um corpo que se goza[3]. Ou seja, um corpo que goza sozinho, sem fazer laço, e que corresponde ao autoerotismo freudiano.
“UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium [nan-na Kum]. Há que dizer assim: ele teihum…, e não: ele éum… (corp/aninhado). É o ter, e não o ser, que o caracteriza. (…) UOM tem [a], no princípio. Por quê? Isso se sente e, uma vez sentido, demonstra-se”[4].
Ao modo da escrita joyceana, Lacan aponta que se trata de ter – e não de ser – um corpo. Laurent destaca que esta é a “terência”[5], ocorrida primeiro para que o gozo possa se inscrever nele. Primeiro se experimenta o gozo para depois poder produzir-se um saber significante sobre o corpo. Ou seja, desse corpo marcado pelo gozo de lalíngua, virão efeitos de acontecimento que possibilitarão a constituição do inconsciente articulado como um saber.
Podemos dizer que o “aprisionamento” do corpo é “não-todo”, comportando algo da dimensão do forçamento, ao introduzir uma diferença quantitativa de gozo. Estamos na clínica do acontecimento de corpo, partidária da noção de foraclusão generalizada. Assim, importa mais uma mutação de gozo do que um franqueamento[6]. Nesse sentido, cada falasser precisa se haver com o gozo como tal, corporal, experimentado como fenômeno. Interessa-nos o modo como o falasser faz, do fenômeno, um acontecimento de corpo, constituindo, assim, um sinthoma enquanto um quarto nó, que tem efeito de enodar os três registros, de modo a reparar o lapso, desestabilizante, no mesmo ponto onde ocorre. O sinthoma, então, é um acontecimento de corpo, contingente, que dá lugar ao sentido[7]. Nesta perspectiva, não se trata de revelar algo, mas de aparelhar gozo. Estaria aí um dos modos de tratarmos a dificuldade com o termo “aprisionar”, tomando-o a partir da noção de enodamento, sinthomático, cujos restos não cessam de reiterar?
Poderíamos dizer que o EGO de Joyce, sinthomatizado por sua escrita – que visava a manter os universitários ocupados por 300 anos –, enoda os três registros sem o recurso de uma imagem corporal i(a), auxiliando no ordenamento de seu circuito de gozo, ao promover seu aparelhamento “sem ceder ao sentido”, como diz Miller[8]? Nesse caso, parece que temos um nome (EGO) no lugar do corpo (enquanto imagem corporal, ego).
[1] Santiago, J. “O novo imaginário é o corpo”. In: Derivas analíticas. Revista digital de psicanálise e cultura da EBP-MG. Belo Horizonte: EBP, março de 2024. Disponível aqui.
[2] Idem.
[3] Miller, J.-A. (2010-2011) Curso da Orientação Lacaniana: O Um sozinho. Inédito.
[4] Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 561.
[5] Laurent, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016, p. 57.
[6] Miller, J-A. “Mutaciones de goce”. In: Sutilezas Analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2011, p. 163-180.
[7]Miller, J-A. (2010-2011). Op. Cit. Destaco o trecho: “O sinthoma é definido como um acontecimento de corpo que evidentemente dá lugar ao sentido. A partir desse acontecimento uma semântica dos sintomas se desenvolve, mas, na raiz dessa semântica há um puro acontecimento de corpo” (tradução livre).
[8] Miller, J-A. “Lacan com Joyce”. In: Correio. N. 65. São Paulo: EBP, abril de 2010, p. 58.
El cuerpo siempre ha sido alterado por rituales impuestos por el discurso social. Eso no es una novedad de la época. Lo que es una novedad de la época es que esas alteraciones no son ahora reguladas, pautadas, ritualizadas por ese discurso [social]. Esa es a mi juicio una característica inédita de nuestra época. La tecnologia y el mercado han entendido que es necessário para los seres parlantes marcar, modificar, alterar sus cuerpos, sea por motivos psicopatológicos, estéticos o de goce. Y tienen mucho para ofrecer… El cuerpo, para ser um cuerpo, siempre es alterado.
(Tarrab, M. “Esplendor de los cuerpos y de los discursos”. In: El decir y lo real. Olivos: Grama Ed, 2023, p. 67-82)
Perda de rumo e foraclusão das coisas do amor
Elizabete Siqueira (EBP/AMP)
A passagem destacada de Maurício Tarrab me fez pensar, acompanhando suas proposições, que o corpo tem ocupado um lugar central ao longo dos tempos e é um dos temas prediletos no discurso contemporâneo das sociedades ocidentais. Essa paixão irrefreável pelo corpo é uma das consequências da estruturação individualista de nossa sociedade, a ponto de Éric Laurent afirmar, sem meias palavras: “O corpo humano é um Deus… Ele é suposto ser o fundamento de uma ciência da felicidade”[1].
Porém, o que se nos apresenta é que a contemporaneidade é ambivalente em relação ao corpo. Por um lado, há uma visão do corpo como esplendoroso, corpo glorioso que pode ser totalmente reciclado pela tecnociência, lugar de resistência, veículo e receptáculo de sensações e gozo. Por outro lado, há um ódio e o corpo é esvaziado de qualquer valor, encarnando a parte maléfica que deve ser corrigida. Há um discurso que o menospreza e o abomina por sua vulnerabilidade, precariedade e finitude, percebendo-o como um corpo entrave[2].
O corpo se tornou objeto de uma busca contínua, infinita, que fala da necessidade de se encontrar uma ancoragem de si. Na contemporaneidade, ele se apresenta como um corpo que se modela e que tende a se metamorfosear em roupa de carne, que se gerencia, e se muda à vontade. Em suma, um negócio que se domina. Em outras palavras, o corpo significa algo a se fazer moldar, a se renovar, a se transformar. É um corpo disponível a qualquer coisa, corpo mercantilizado, marcado, pressionado de formas tão fortes quanto contraditórias.
Haber e Renault prenunciaram que o mercado da forma e da saúde orientaria a economia do século XXI para a biotecnologia[3]. Para eles, o neoliberalismo não perdoa os corpos, haja vista a existência de todo um mercado de consumo dirigido ao corpo, provocador de identidades em ruptura, encenadas nas perturbações corporais. Destacam a existência de batalhas com e pelo corpo, atualizadas sob a forma de múltiplas ideologias que avalizam violências simbólicas sobre ele, com fins de naturalizar opressões invisíveis que o mercantilizam e de ocultar dominações subliminares. Podemos deduzir que há um canibalismo disfarçado que devora o corpo, modificando-o e maltratando-o.
Tal voracidade dirigida ao corpo é o signo de que, nesta civilização do consumo, o gozo está solto, sem rédeas, buscando uma plenitude imaginária inexistente e impossível, de um gozar até não poder mais, em uma relação direta com o objeto. Em resumo, a civilização ocidental e capitalista provoca a troca da dialética do desejo pelo gozo autoerótico. Tal oferta produz sujeitos incapazes de lidar com a falta e, consequentemente, com as coisas do amor. Por tudo isso, “é um erro acomodar-se à perda de rumo da época”[4].
[1] Laurent, É. Entrevista para o Jornal La nación. Exibição em 9 de julho de 2008. Divulgação pela mala-direta da EBP-Veredas, em 01/08/2008. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, 2008.
[2] Siqueira, E. R.A. Muralhas da inibição. Curitiba: CRV, 2018.
[3] Haber, S. & Renault, É. Cuerpos dominados, cuerpos en ruptura. Buenos Aires: Nueva Visión, 2007.
[4] Tarrab, M. “Esplendor de los cuerpos y de los discursos” Op. cit., p. 67-82.
O que distingue o discurso do capitalismo é isto: a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei – rejeição de quê? Da castração. Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, de coisas do amor, meus bons amigos. Como vocês veem, não é pouca coisa, certo? (Lacan, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Zahar, p. 88.)
Certo, dr. Lacan, não é pouca coisa
Louise Lhullier (EBP/AMP)
Uma catástrofe destrói vidas, cidades e sonhos no Rio Grande do Sul. Não foi surpresa. Há muitos anos, vários estudos alertavam para o perigo. Uma enchente ocorrida seis meses atrás anunciava o que viria. Não foi suficiente. O “não querer saber nada disso” prevaleceu.
Júlia Dantas[1] descreve como ela e o marido continuaram “confiantes” e “otimistas” mesmo quando andaram com água até os joelhos para ir às compras no sábado, e como tudo parecia “absolutamente normal” no resto do bairro. Naquela noite a água começou a invadir seu apartamento. A força do desejo foi o motor de uma luta que se estendeu até o domingo, para salvar suas coisas, que “nunca são apenas coisas”. Só desistiram quando “tudo começou a ruir”, com a água subindo pelos ralos, vertendo do chão e das paredes. Saíram com água pela cintura.
A solidariedade fez chegar às centenas de milhares de desabrigados um grande volume de doações. Nesse cenário, o governador do Estado manifestou publicamente sua preocupação com os prejuízos que esse volume de donativos traria para os comerciantes gaúchos, sugerindo que as doações “físicas” geravam um problema, pois as pessoas deixariam de comprar… Muito criticado, desculpou-se.
“Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, de coisas do amor”[2], disse Lacan há cinquenta anos. Nas palavras do governador, o verdadeiro Mestre[3] emergiu furando o semblante precariamente constituído no pífio agradecimento à solidariedade que antecedeu seu apelo pelo redirecionamento das doações. Ante a fome, o frio e o desamparo dos que viram tudo ruir, a solidariedade, dos que ainda não deixaram de lado as coisas do amor, se articulou pela via dos discursos, do que faz laço. O apelo pela salvação do comércio foi na direção contrária, reduzindo a falta à mera falta das coisas que circulam no Mercado, esse Mestre atual que desconhece a castração, que não faz barreira ao gozo e, portanto, não constitui o laço social. Se revela aí uma variante do “não querer saber nada disso”.
Tanto na invasão das águas quanto do gozo, as barreiras se mostram cada vez mais débeis em sua função de freio, deixando um rastro de destruição em sua passagem para além do que organizava seus caminhos sob o comando dos ideais, dos significantes-mestres. O fluxo é inexorável e acelerado, sem os limites da impossibilidade, do corte e da falta[4], aí onde a castração foi forcluída. Haverá resposta possível da psicanálise?
Em tempos de queda dos significantes-mestres, sob o comando do objeto em aliança com o “não querer saber nada disso”, tudo o que nos resta é a palavra. Em um texto de Gil Caroz[5], encontro três referências, frutos de sua leitura de Lacan[6]: a aposta na angústia como algo que pode fazer ponto de basta, o papel do psicanalista como aquele que se dedica a provocar a vergonha[7] e vergonha e responsabilidade como “dois termos para designar posições subjetivas que fazem barreira à pulsão de morte”[8]. Talvez se pudesse acrescentar, com Guimarães Rosa, a coragem, “aquilo que a vida quer da gente”[9].
[1] https://juliaydantas.substack.com/p/a-casa-alagada
[2] Lacan, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Zahar, p. 88.
[3] Vide Fabián Fajnwaks em https://ebp.org.br/nordeste/jornadas/2022/2022/08/16/o-discurso-capitalista-e-o-impossivel/
[4] Idem.
[5] Caroz, G. “L’Ére de irresponsabilité”. In: Mental, n.39, juillet 2019, p. 26. (Tradução da autora)
[6] Lacan, J. O triunfo da religião precedido de discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
[7] Caroz, G. Op. cit. (Tradução da autora)
[8] Idem.
[9] Rosa, J. G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
Notem, por outro lado, que se há algo que até hoje deu um enquadre ao circuito do supereu na história humana, é o que Lacan chamou Discurso do Mestre, o qual não é um movimento perpétuo, e permite uma produção e uma separação do mais de gozar, do gozo suplementar. De fato, o discurso do mestre captou o termo subjetivo e esse elemento de gozo suplementar que chamamos a, e os enquadrou a fim de limitar estritamente sua cópula. Por isso, [esse discurso] é eminentemente civilizador: rompe o circuito, se estabelece sobre uma quebra, [faz] uma barreira entre o sujeito e esse gozo suplementar, e corrige, pois, este impasse crescente da nossa civilização. (Miller, J.-A. El banquete de los analistas. Buenos Aires: Paidós, 2011, p. 307. Tradução nossa.)
Este impasse crescente da nossa civilização
Cleyton Andrade (EBP/AMP)
Enquanto escrevo, o desastre no Rio Grande do Sul ainda está em curso. Há muito sofrimento e perdas envolvidas. Porém, infelizmente, muitos o transformam em palco para mais uma das numerosas operações que resultam em impasses para a noção de verdade. Defender a verdade parece algo antiquado (Miller, 2011) e muitas vezes, inútil. Afinal, o mecanismo em jogo não é apenas sobre a mentira e nem sobre o falso como oposição ao verdadeiro. Dizer ostensivamente que não há Estado, que não há instituições, nem organizações, com afirmações peremptórias de ações supostamente exclusivistas dos civis que salvam civis, diante da alegada inação do Estado e até de dificuldades impostas por ele, se apresenta como um dos nomes reeditados do sujeito liberal. Esse mesmo sujeito é central e fundamental no capitalismo, por ser ele mesmo uma expressão de uma vontade que transborda barragens e inunda de gozo seu circuito. Esse senhor do capitalismo, que reaparece nos movimentos radicais e reacionários de extrema direita, nos ajuda a entender um trecho do curso O Banquete dos analistas, de Miller. E ambos nos permitem atualizar uma leitura sobre como o capitalismo não só absorve, como retroalimenta os impasses da civilização, num movimento perpétuo.
No caso do Brasil, temos a demonstração de como uma face do capitalismo se alia muito bem ao fascismo não apenas pela monetização vinda destes movimentos, mas, sobretudo, por uma identidade conceitual que sobrepõe uma versão do sujeito liberal do capitalismo ao homem de bem, com sua pátria, sua família, seu Deus, e sua liberdade. Lendo Miller, temos a psicanálise como oposição, como um caminho contrário a esse fundamento perverso da civilização (Miller, 2011). Cabe à psicanálise estar contra qualquer mecanismo que se coloque como uma volatização do real (Miller, 2011) desencadeada por um mestre moderno e liberal acoplado ao mais-de-gozar, ao a, a ponto de transformar o real de uma forma que não ocorrera enquanto imperava a ação civilizatória do Discurso do Mestre. Hoje estamos confrontados cotidianamente com uma junção do extremismo/radicalismo com o capitalismo. Não é mais uma novidade nas mãos do psicanalista a percepção de que o desejo é um efeito que depende de uma articulação entre S1 e S2 (Miller, 2011). O outro lado da partida a ser jogada também sabe muito bem disso e traduz sob diversas formas de rentabilidade, seja monetária, financeira ou política, com efeitos devastadores no empreendimento civilizatório. Manipulam isso muito bem, na condição de que tudo vale para as núpcias desse sujeito com o gozo suplementar.
Tratemos aqui, a partir de Miller, de algumas premissas: 1) o mal-estar na Cultura é chamado de impasses da civilização/Cultura; 2) isso se refere a um circuito do Supereu, uma vez que, para Freud, a Cultura se orienta pela ética do Supereu; 3) há uma antinomia entre psicanálise e Cultura, posto que não seguem a mesma ética.
Em poucas palavras: para viver em sociedade seria necessário ceder em seu desejo como uma forma de renunciar ao gozo da pulsão; contudo, essa separação exigida com relação ao mais-de-gozar, a, não apazigua o Supereu, uma vez que ele se apropria desse gozo, fomentando um circuito infernal de retroalimentação. Se a figura do casamento foi essencial a Freud por indicar esse circuito interminável, a ruptura com o casamento parecia um caminho vislumbrado. O problema é que o gozo a que se renuncia serve ao Supereu. Ele goza da renúncia ao gozo.
Há um circuito que vai da incidência do Supereu sobre a pulsão, exigindo que abdiquemos de uma satisfação, produzindo e separando o objeto a; e depois, um retorno dessa produção que foi separada, para o mesmo Supereu. Aquilo que foi separado retorna também como gozo. Esse é o caráter perpétuo do movimento constante da Cultura. A vontade moral se encontra com a vontade de gozo – é por onde se pode ler algo da perversão na civilização, sob o imperativo Goze!
A diferença a ser introduzida sobre essas vontades sobrepostas passa pelo conceito de discurso, sobretudo como algo oposto a esse movimento perpétuo. Ou seja, o conceito de discurso, necessariamente, implica a ideia de barragem, barreira, limite, contenção, ruptura. Por exemplo, o Discurso do Analista impõe um obstáculo intransponível entre o S1 e S2 que ocupam respectivamente o lugar da produção e o lugar da verdade, impedindo um retorno ao começo do circuito. Esse é o modo do Discurso do Analista sustentar uma barragem que impeça o transbordamento da vontade de gozo.
O que operou um limite na história da civilização foi o Discurso do Mestre, que captou tanto o sujeito quanto o gozo e sustentou uma barreira, um limite para ambos. Essa é a dimensão civilizatória do Discurso do Mestre: impedir a cópula entre $ e a. Há uma impossibilidade de passagem entre produção e verdade. Contudo, o surgimento do capitalismo parece ter desestabilizado essa função civilizatória do Discurso do Mestre ao retomar um caminho que reitera o circuito perpétuo da Cultura, restabelecendo o acesso entre a e $, conectando-os. Por isso o capitalismo não é, de fato, um discurso, posto que falta a ele um elemento fundamental: entre produção e verdade, por definição, deve haver uma impossibilidade (DM e DA) ou impotência (DH e DU). No capitalismo o mais-de-gozar não está na realidade transformada em fantasia, mas sim como algo sustentado na própria realidade, por isso ele pode se valer muito bem do negacionista, das fake News, e das demais estratégias de movimentos extremistas e reacionários, todos nesse caminho contrário à psicanálise, com suas formas de um mais-de-gozar desregulado.
“Estou falando da variável aparente. A variável aparente x constitui-se de que o x marca um lugar vazio naquilo de que se trata. A condição para isso funcionar é que coloquemos exatamente o mesmo significante em todos os lugares reservados vazios. Essa é a única maneira da linguagem chegar a alguma coisa. E foi por isso que me expressei nesta formulação: não existe metalinguagem” (Lacan, J. [1971-1972] O seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 12).
Romildo do Rêgo Barros (AME da EBP/AMP)
O sintoma, entre o sim e o não
Começo lembrando uma resposta dada por Ariano Suassuna, bem à sua maneira, para alguém que estranhava o seu medo de avião:
Ariano, dizia esse amigo, carro é muito mais perigoso do que avião… Se numa curva topa com um buraco pode sofrer um acidente, muitas vezes fatal.
E avião, respondeu Ariano com outra pergunta, que para onde vai leva embaixo dele um buraco…?[1]
Até aí, temos uma boa anedota, feita para rir, como todo sintoma neurótico quando é usado como argumento. Torna-se um pouco mais sisuda se acrescentarmos uma conclusão: o buraco onipresente sob o avião é condição do voo. Não há voo sem buraco. Enquanto o carro na curva depende da contingência de haver ou não um buraco (nunca é garantido que haja), o voo do avião tem o buraco como necessidade, uma vez que surge justamente na separação entre a massa do avião e o solo. Suassuna, talvez sem querer, aponta para um além do vazio, para um ponto em que já não há só uma piada, mas condição da linguagem e do sintoma.
Lacan diz, na sua frase, que “A variável aparente x constitui-se de que o x marca um lugar vazio naquilo de que se trata”. Ou seja, aquilo de que se trata (“ce dont il s’agit” – expressão francesa difícil de se encontrar um correspondente elegante em português), só opera se houver um lugar vazio, marcado por Lacan com um x.
Como no argumento fóbico de Ariano, o negativo é condição do positivo. É a partir daí que surge um terceiro termo como defesa sintomática: a esperança de percorrer uma estrada sem rupturas, para o carro, ou a defesa que o fóbico encontra no próprio medo, para o avião.
O terceiro termo, naturalmente, é variável. Pode-se ter medo de carro, assim como se pode ser mais ou menos indiferente às incertezas do avião. O que se pode dizer é que não há linguagem sem o vazio que Lacan representou com a incógnita.
Essa discussão se torna particularmente importante nos nossos tempos, quando a civilização, e nossa clínica em consequência, põe em confronto o desejo e o gozo, o que altera muitas vezes o estatuto do sintoma.
[1] Para aproveitar a anedota contada por Ariano Suassuna, não vou distinguir neste comentário o vazio do buraco.
“Mas persiste o fato de que, no nível em que funciona o discurso que não é o discurso analítico, coloca-se a questão de como esse discurso conseguiu aprisionar [attraper] corpos. No nível do discurso do mestre/senhor, (…) vocês, como corpos, estão petrificados [pétris]” (Lacan, J. [1971-1972] O seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 220).
Maria Helena Barbosa (EBP/AMP)
Quando Lacan afirma que “No nível do discurso do mestre/senhor, vocês, como corpos, estão petrificados”, está aludindo a uma certa homologia que ele produziu a respeito da estrutura entre Michelangelo e sua obra, e o discurso do mestre/senhor.
Lembramos da famosa frase dita por Michelangelo ao ser indagado por Leonardo Da Vinci quando do término da escultura de Davi: “Eu apenas tirei da pedra de mármore tudo que não era Davi”.
Lacan, na introdução do capítulo XVI do Seminário 19: …ou pior, aborda o escultor e sua obra para apontar que, até para Michelangelo, a obra sempre vem sob um comando. “O que comanda é o Um. O Um cria o Ser. (…) o Um não é o Ser, ele constitui [fait] o Ser” (p. 214).
Ele segue dizendo que: “A relação do homem com um mundo seu (…) nunca foi mais que uma presunção a serviço do discurso do mestre/senhor” (p. 215).
Também vale lembrar outra das principais obras do artista, abordada por Freud em um extenso artigo de 1914. Conta-se que ao terminar de esculpir a estátua de Moisés, Michelangelo, fascinado diante da beleza da imponente escultura, bateu com um martelo no joelho direito dela produzindo uma fratura no mármore e gritou: “Parla!” [Fala!]
Michelangelo é um dos grandes nomes do Renascimento italiano que despontou no século XV, caracterizando uma nova concepção sobre a vida humana. Sua formação humanista e a forte influência da cultura clássica se refletem na produção de suas pinturas e esculturas.